O (Des) encontro da mídia com a periferia
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Ricardo Kauffman | |||||||||
O rapper foi autêntico. Emitiu opiniões controversas e diretas que quase nunca (ou nunca) são defendidas nos grandes meios de comunicação do país. Defendeu traficantes, camelôs e torcida organizada. Cuba, socialismo, os evangélicos e o candomblé. Apontou pontos fortes e fracos da política de combate à pobreza. Defendeu as cotas para negros nas universidades - "isto é o mínimo", disse. Defendeu o presidente Lula e a conduta dele diante dos últimos casos de corrupção. Defendeu o líder sem-terra José Rainha, a ex-prefeita Marta Suplicy e os seus CEUs. Atacou a Ambev. Atacou a pinga 51. Desdenhou do governador de São Paulo, José Serra. Desdenhou da Nike e da Adidas. Rechaçou o papel de herói. Expôs fragilidades próprias. Manteve o controle das ações. Foi respeitoso, e impôs respeito. Por sua vez, a banca de entrevistadores não foi contundente. Parecia não estar num bom dia. Sofrer de algum tipo de paralisia momentânea e coletiva. Estar, de alguma maneira, menos potente. "Ta suave até agora, tô até estranhando", notou o próprio Brown. Estavam lá jornalistas e estudiosos de gabarito, que já haviam participado do programa e de outros debates com desenvoltura. São nomes representativos da imprensa de comportamento e cultural, do jornalismo de opinião conservadora e da TV Pública, da cobertura social e policial. Também da psicanálise e das letras - neste último caso, o único entrevistador oriundo da periferia. A bancada não acusou Brown de ser generalista na sua crítica a policiais. Não o acusou de fazer apologia ao crime. Não o questionou sobre o tumulto da Virada Cultural, em São Paulo. Não o questionou claramente sobre o que pensa das elites. Nem sobre o que pensa da classe média, da mídia e de uma política de segurança possível. Esteve tímida e constrangida. Teve medo do líder dos Racionais MC's. E demonstrou pouco conhecimento dos valores da periferia, sem admiti-lo. A cada declaração desconcertante de Brown se sucedia um silêncio pesado, tensão, desconforto. "O que vocês chamam de traficante, chamo de comerciante, o cara que comercializa cocaína". Ou: "O dono da 51 não tira cadeia. A Ambev não tira cadeia. Se você tomar quatro latas de cerveja, você vira super-homem na Marginal", disse o rapper. Ou ainda: "os nossos amigos, da nossa família, do nosso parceiro, das caras que estão lado a lado, muitas vezes é o traficante", disparou. Brown pronunciou idéias e palavras estranhas aos ouvidos de todos cuja maior fonte de informação sobre a periferia é a mídia. Simpáticas ou antipáticas, são impressões tiradas do ângulo da periferia. E este ângulo não tem espaço cativo na nossa grande imprensa. Acredito que a falta de pegada dos entrevistadores esteja ligada ao divórcio entre boa parte da cobertura jornalística e os bairros periféricos das grandes cidades. É até clichê afirmar que a favela só está nas páginas policiais dos jornais. Os órgãos de imprensa não cobrem bem as áreas habitadas por populações cujo poder de consumo não atinge a faixa de público procurada por seus anunciantes. Quando o fazem, é com o ângulo de quem é de fora. Salvo importantes exceções, como o trabalho do repórter André Caramante e de outros observadores que vivem o dia-a-dia das comunidades - eles fizeram falta ao programa. A grande imprensa (refiro-me ao jornalismo, e não ao entretenimento) fala cada vez menos com a periferia. Já faz um tempo que estes moradores deixaram de levar esta mídia em conta. Isso é fruto de um distanciamento imenso. Representantes de comunidades e a mídia da periferia provavelmente estariam mais à vontade para questionar Brown. As idéias propagadas pela cultura rap estão longe de ser unanimidade no seu habitat. Perdeu-se a chance de conhecer mais a fundo o que pensa esta liderança. Um encontro verdadeiro entre a mídia e a periferia será benéfico para a sociedade. Isso acontecerá quando representantes das comunidades forem presença generalizada nas redações. E quando as demandas e expressões periféricas tiverem a cobertura que merecem. Este processo já está em curso. Por enquanto, a grande mídia está de fora. Cada vez mais isolada, paralisada e com medo. Ricardo Kauffman é jornalista e roteirista. Fale com Ricardo Kauffman: rikauffman@terra.com.br |
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