sexta-feira, 28 de setembro de 2007

A balada sem fim da corrupção primordial

Wanderley Guilherme dos Santos

Eu& revista semanal do Valor

Pepe Casals
Ao abrir a caixinha de Pandora da corrupção se descobre tratar-se de um vasto contêiner. Contêiner de dimensões bíblicas, literalmente. A começar pela serpentina corrupção que interditou o Paraíso aos mortais, os relatos dos "Velho" e "Novo Testamento" mais se parecem a um catálogo maquiavélico de perfídias, chantagens, subornos, traições, adultérios, assassinatos. Tudo se passando entre figurões de nobre estirpe e destino consagrado por vaticínio, que fique explicitamente anotado. Os políticos da atual ribalta humana nem como coroinhas teriam competência para participar daqueles enredos de lavra transcendente. Há os que, hoje, mais apopléticos do que os cronistas de fim de semana em busca de sua côdea de aplauso, ousam incriminar o próprio Criador, posto que todas as infâmias bíblicas constariam de seu enciclopédico conhecimento, ou até de seu misterioso desígnio. Convém não esquecer, portanto, que a queda responsável pela condição humana pós-Éden se deu como resultado de gulosa cumplicidade adâmica com certo negócio corrupto, envolvendo uma desde então famosa Eva. Como se sabe, a equivalente CPI daquela negociata foi estrondosa, dada a estatura de seu relator e presidente, com as penas finais transmissíveis às gerações sem fim dos implicados. Ainda estão por aí o parto doloroso e o pão que o diabo amassou com o suor do rosto de cada um. Para livrar-se deles, aliás, é que os novos errantes têm reincidido no emprego e gozo de patifarias, magistralmente reportadas em jornalismo investigativo nos dois testamentos.


Desde então a história, escrita ou passada à boca pequena, registra implacavelmente a grandeza dos heróis assim como dos vilões, pondo-os no mesmo pedestal, tanto nas gestas orientais quanto nas legendas fundadoras das civilizações do Ocidente. O "Gilgamesh", a "Odisséia", a "Ilíada", Ra e Osíris, são histórias ou personagens de histórias que nada ficam a dever aos atrozes relatos bíblicos. A magnífica edição dos "Mitos e Legendas" de vários povos da Antiguidade, em mais de dez volumes da Easton Press, propicia um aprendizado de humildade a todo aspirante à santidade, presente ou futura. Pedagogia indispensável a um estudo menos complacente da história grega clássica, romana, feudal ou renascentista. Os antepassados da moralidade moderna não eram apenas bárbaros, no sentido de fisicamente selvagens e violentos, mas adeptos de costumes e normas de convivência capazes de precipitar abortos em gestantes das classes médias contemporâneas. A pederastia como didática na Atenas clássica, por exemplo, foi um desses hábitos normalmente apreciados. As classes médias, é de conhecimento geral, não existiam antigamente e, quando surgiram, já vieram pré-fabricadas com estômago fraco e ideologia fascista. Abortam, agora, para esconder adultérios (vale deixar consignado um contraditório ao corrente e desproporcional embelezamento desse estamento "Maria vai com as outras").


Os nobres feudais não se ruborizavam com o concubinato entre prelados e, até mesmo, as próprias filhas, alguns deles chegando ao papado, destinatários de inveja e respeito. Na ausência de instituições publicamente envolventes, a sucessão no poder era resolvida pela força e astúcia, que Maquiavel, em lance teórico inovador, substituirá por virtude e acaso, sem desprezar, contudo, a intriga, a espionagem, o suborno e a dissimulação. Em uma palavra, desde as narrativas bíblicas não se conhece uma história de sucesso que não contenha passagens de fazer corar os hipócritas dos suplementos literários dominicais.



Quem não esqueceu de anotar uma remuneração por serviço prestado na declaração anual de renda?


O Renascimento, como se sabe, não deixou por menos, popularizando a venda de absolvições, unhas de santos e dentaduras de mártires. Espécie de fisiologismo espiritual - toma lá, dá cá - que não cabia atribuir aos sistemas eleitorais ou partidários, não havendo nenhum para servir como bode expiatório da desonestidade individual dos tratantes episcopais. Os gentios bons discípulos sempre souberam que, em face das trapaças da elite, a única escapadela ilegal a eles disponível encontrava-se no jeitinho, na bajulação dos poderosos, aos quais desculpavam todos os ilícitos em troca de migalhas. Certamente havia, ao tempo, algo análogo à anistia fiscal dos atuais ruralistas brasileiros, do refinanciamento das dívidas dos industriais, dos empréstimos subsidiados, dos mandatos de suplentes de senadores, ou o equivalente, como pagamento ao dinheiro investido nas campanhas. Mas, tal como no Brasil contemporâneo, essas patifarias eram registradas pelos pasquins da época como decisões de alta política, proteção a uma elite ética e progressista que repudiava como subserviência imoral a sopa dos pobres em troca de apoio nos conflitos entre elas, elites. A cabeça dos europeus era assim, como a que se diz dos brasileiros, dúplice, a das elites envolvida em cálculos de maximização de ganhos, se necessário ao arrepio da lei, mas clandestinamente, e a dos miseráveis, caçados pelos repórteres e pesquisadores da época a revelar como vendiam apoio em troca de favores e, que remédio!, nada vendo de mal nas falcatruas dos ricos, de onde lhes vinha a possibilidade de sobrevivência. Mas quem não sabe que, desde a "Bíblia", a humanidade é, por inclinação, corrupta?


Depois de instaurado e solidificado o capitalismo, com seus impostos e taxas, quem não aceitou pagar menos ao clínico, ao dentista, ao oculista, abrindo mão do recibo comprovante de renda dos profissionais? Qual é a porcentagem da renda e da caixinha das pequenas cidades no sul dos Estados Unidos, cuja origem se encontra nas multas de trânsito não registradas? Quem não esqueceu de anotar uma remuneração por serviço prestado na declaração anual de renda? Quem não pagou ao flanelinha para ocupar uma vaga que não era sua? Quem não mentiu em benefício próprio? Ou de um parente? Quem não pediu por um parente? Uma vaga, um emprego, um aumento, um contrato? Quantos são os sobrenomes que nada seriam se só fossem nomes? E na mesma profissão? Quem não corrompeu? Quem não foi corrompido? Quantos juízes jamais serão julgados pelas sentenças de amizade? Ou por pecúnia? Quanta infâmia remunerada? Quanta verdade escondida? Que desejam os chamados papagaios de pirata das fotografias oficiais? Que desejam os freqüentadores de todos os almoços e jantares, lançamentos de livros, festas, encontros? Quem está de acordo com o patrão para o que der e vier? Quem escreve o que o dono manda?


A humanidade, ao contrário do desejo de Rousseau, é má por natureza. Corrupta por inclinação e oportunidade. Sua punição já existe, e é vivermos no meio uns dos outros. O crime a ser punido é a extensão da corrupção, para isso é que se faz necessária uma métrica. Aquele que jamais foi apanhado em atos corruptos merece aplauso pela resistência à própria natureza e aos convites do mundo. Os que se deixaram levar pela impulsão atávica devem pagar pela magnitude da tentação em que caíram. Os que os vão punir, entretanto, devem atentar para a extensão do ilícito, não para o crime abstrato, como se alguém dele fosse inocente. Não se pune o criminoso senão no estilo da redação da pena. Pune-se o crime, independente do suposto caráter de quem o cometeu. Somos todos descendentes da corrupção primordial e ninguém está livre do pecado. Basta, aliás, incessante investigação e os indícios virão à tona. Acobertados pela inexistência de investigação específica, se ganha dinheiro no exercício de apontar a corrupção alheia. É a corrupção da opinião. Cuja, para coroamento do sistema jurídico dos decaídos do Éden, está isenta de investigação.


Wanderley Guilherme dos Santos, membro da Academia Brasileira de Ciências, escreve quinzenalmente neste espaço


Email: leex@candidomendes.edu.br

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