quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Política em democracias sempre será partidária

Técnica, ética e política

Dois episódios recentes da política brasileira, ambos envolvendo ministros do governo Lula, lançaram luz sobre a questão das fronteiras entre a política e duas outras dimensões importantes da vida social: a técnica e a ética. Refiro-me à nomeação do senador Edison Lobão para o Ministério das Minas e Energia e à celeuma envolvendo o conflito entre a Comissão de Ética Pública da Presidência da República e o ministro do Trabalho, Carlos Lupi. Comecemos por esta última.


A Comissão de Ética Pública, órgão consultivo vinculado à Presidência da República e criado por decreto presidencial em 1999, considerou que a permanência do ministro Carlos Lupi na presidência de seu partido, o PDT, seria algo eticamente incompatível com o bom exercício do cargo. No entendimento da Comissão, "o exercício simultâneo do cargo público e de cargo de direção político-partidária compromete a necessária clareza de posições exigida das autoridades públicas, de acordo com o art. 3º , do Código de Conduta da Alta Administração Federal, e suscita conflito de interesses, conforme dispõe a Resolução nº 8, de 25.09.2003".

Vejamos o que dizem as normas consideradas pela Comissão acerca da conduta de membros do governo. O referido artigo do Código de Conduta estabelece o seguinte: "No exercício de suas funções, as autoridades públicas deverão pautar-se pelos padrões da ética, sobretudo no que diz respeito à integridade, à moralidade, à clareza de posições e ao decoro, com vistas a motivar o respeito e a confiança do público em geral. (...) Os padrões éticos de que trata este artigo são exigidos da autoridade pública na relação entre suas atividades públicas e privadas, de modo a prevenir eventuais conflitos de interesses." Ora, não há nada aqui que determine que membros de partidos políticos (mesmo que sejam seus presidentes), não exerçam cargos ministeriais. Talvez se possa divisar algo de concreto no item 1.b. da referida resolução nº 8: "Suscita conflito de interesses o exercício de atividade que: (...) viole o princípio da integral dedicação pelo ocupante de cargo em comissão ou função de confiança, que exige a precedência das atribuições do cargo ou função pública sobre quaisquer outras atividades".


O que se pode questionar é: o exercício da presidência de um partido político é incompatível com o exercício de um posto ministerial? Seria se o desempenho das atividades partidárias impedisse o simultâneo exercício das funções ministeriais. Há de se considerar, contudo, o caráter essencialmente partidário das democracias contemporâneas (seja das consolidadas, seja das emergentes), de modo que a própria indicação de indivíduos para postos ministeriais ocorre levando-se em consideração o pertencimento partidário - seja no Brasil, na Suécia ou na Inglaterra. Exigir de um presidente de partido que renuncie ao posto partidário em função de suas incumbências no Poder Executivo é supor que ao se tornar ministro ele deixe de atuar como membro de seu partido. Mas é exatamente o inverso que ocorre: ele apenas está ali porque é membro de um partido. Espera-se que, em seu desempenho no cargo, atue de acordo com as linhas preconizadas por sua agremiação - evidentemente com as limitações postas pela realidade sócio-econômica e pelas restrições de atuar num governo de coalizão, como é o caso brasileiro. De burocratas pode-se exigir desvinculação partidária, jamais de ministros políticos. Caso contrário, defende-se a "ética" (ou, na verdade, o moralismo) contra a política.


Problema similar armou-se na discussão em torno da nomeação de Edison Lobão para as Minas e Energia. Para além das discussões (muito apropriadas) acerca de seus qualificativos políticos, questionou-se seu nome em função de não ser ele um "técnico" do setor energético. De fato não é, mas o curioso é se esperar que devesse ser. Ministros não precisam (e talvez até não devam) ser técnicos dos setores a que se dedicam. Sua função é desempenhar a liderança política do órgão a que estão vinculados. O problema da administração pública no Brasil não está numa suposta existência de muitos ministros políticos em detrimento dos técnicos, mas sim de muitos indivíduos politicamente indicados para cargos de perfil eminentemente técnico - dentre os quais, certamente, não se enquadra o de ministro de Estado. A esse propósito, aliás, seria o caso de lembrarmos-nos de dois casos recentes de ministros eminentemente políticos, de formação muito diversa da área técnica em que se enquadravam suas pastas e igualmente bem-sucedidos: José Serra, economista, na Saúde, e Antônio Palocci, médico, na Fazenda. Poder-se-ia alegar que há aí uma inversão de competências, mas isso seria um equívoco, pois não se tratava de indicações técnicas, mas sim políticas, em ambos os casos.


O equívoco que afeta tanto a posição da Comissão de Ética como o daqueles que contestam o perfil "não-técnico" do ministro Lobão é o de negar a política em favor do "moralismo", por um lado, e do "tecnicismo", por outro. As considerações de ordem ética e técnica são, evidentemente, importantíssimas na vida política e social e precisam ser consideradas pelos agentes públicos. Isto não implica, contudo, que devam se sobrepor às considerações de ordem política. E, nas democracias contemporâneas, falar em política implica, necessariamente, falar em partidos políticos. Curiosamente, muitos dos que hoje criticam os vínculos partidários dos dois ministros são os mesmos que reclamam constantemente por partidos mais fortes em nosso país.

Cláudio Gonçalves Couto é professor de Ciência Política da PUC-SP e da FGV-SP

claudio.couto@pucsp.br

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