Retratos de um devorador de imagens
O Grand Palais abriga mostra do pintor Courbet, um transgressor que desconcertou crítica e público
Luiz Carlos Merten - O Estado de São Paulo
Só falta convencer Tim Burton. Ele teria um grande personagem e o ator perfeito para fazer o papel - Johnny Depp -, mas Burton talvez achasse que, sob certos aspectos, já fez este filme, em Ed Wood. A diferença é que o chamado 'pior cineasta do mundo' chegava a ser cândido na sua crença naquilo que fazia e Gustave Courbet - pois seria ele o grande personagem - foi um dos maiores pintores da França e do mundo. É o que prova uma grande exposição, aberta até o dia 28, consagrada a ele pelo Museu do Grand Palais, em Paris.
Vale a pena enfrentar as filas que, diariamente - com exceção das terças-feiras -, se formam na porta do Grand Palais para ter acesso a essa retrospectiva. Os próprios franceses estão em êxtase, redescobrindo um pintor genial que sempre desconcertou a crítica e o público por sua obsessão em seguir uma via própria. Courbet foi um grande realista contemporâneo dos impressionistas. Sua Origem do Mundo provocou escândalo em 1866 e, até hoje, mais de 140 anos depois, ainda provoca risinhos nervosos diante da tela que o Museu D'Orsay emprestou ao Grand Palais para integrar essa mostra única.
A Origem do Mundo mostra o detalhe de uma mulher nua, de pernas abertas. Nada além da crua exposição de sua vagina. Courbet teria sido influenciado pelas fotografias pornográficas que, na época, circulavam entre a mundanidade parisiense. Ao redor da tela estão numerosas daquelas fotos. Nenhuma é mais realista e verdadeira do que a pintura de Courbet, na qual a carnalidade da modelo - suas grossas coxas e os pêlos pubianos - parecem saltar da tela, como se de repente aquela mulher ali imobilizada pudesse adquirir movimento. A Origem do Mundo, pelos motivos que você pode imaginar, atrai a atenção de muitos visitantes da exposição do Grand Palais, mas o maior número concentra-se diante de uma tela maior que representa o artista em seu ateliê.
O Ateliê do Pintor, Alegoria Realista Representando Sete Anos da Minha Vida Artística é de 1855, mais de uma década antes de A Origem do Mundo. São vários quadros dentro de um só, com a figura do pintor ocupando o centro. Ele pinta uma paisagem, sob os olhares de admiração de uma criança e de uma mulher nua. Ao redor, diferentes grupos de personagens e detalhes de quadros ampliam e potencializam o motivo principal. A admiração que O Ateliê do Pintor provoca, inclusive - ou principalmente - pela mestria na disposição do óleo sobre a tela e pela complexidade no tratamento da cor, pode ser comparada à de outro ateliê famoso, aquele que Velázquez revelou em outra obra célebre, As Meninas.
Huile sur toile, 361x598, 1855, musée d’Orsay, Paris
Logo na abertura da exposição, uma frase do próprio Courbet prepara o público para o que ele vai ver. O pintor diz que, contra tudo e todos, quer permanecer sempre à margem, percorrendo uma via única - a sua. A exposição, a partir daí, divide-se em fases, começando pela (auto)invenção de Courbet - pelos seus auto-retratos. Entre 1842 e 55, Courbet pintou cerca de 20 auto-retratos, dos quais o mais conhecido é o que fornece a imagem dos cartazes da exposição. Retrato do Artista, dito O Desesperado, sugere para o espectador do século 21 como se estivesse diante de uma tela premonitória de Johnny Depp. Quando Courbet pintou seus auto-retratos, os críticos viam nos quadros signos de um narcisismo que definiam como 'instabilidade estilística imatura'. Hoje em dia, a interpretação é outra.
Courbet, homem de cultura, partiu da meditação sobre os grandes mestres antigos - que estudava e copiava no Louvre - para a assimilação de um romantismo que já agonizava quando ele começou sua grande arte. Os auto-retratos mostram Courbet como um devorador de imagens e cada quadro em que ele se representa vem carregado de informações sociais. Ora ele é O Desesperado ou O Homem Ferido (L'Homme Blessé) ou então é flagrado junto ao seu cão negro. Todos esses auto-retratos compõem uma gigantesca busca autobiográfica que vai irrigar os primeiros anos de Courbet, dar-lhe confiança e estabelecer os fundamentos de sua arte realista.
Realista ele o será, sempre, mesmo que seu realismo muitas vezes seja definido por ele próprio como 'alegoria'. À margem da grande exposição universal de Paris, nos anos 1850, Courbet realiza o que era raro - uma mostra na qual o público tinha de pagar para ver os quadros que ele apresentava no contexto de um manifesto que chamou de Le Réalisme (O Realismo). Esse realismo triunfante se manifesta nas sucessivas mostras que vão compondo a exposição - da intimidade à grande história; Courbet retratista e paisagista; a tentação moderna; o nu, a tradição transgredida; e as imagens bucólicas de caça. A tentação moderna se manifesta num tratamento da cor como volume que lembra certos quadros de Cézanne. Suas naturezas-mortas são as mais vivas já pintadas, frutas e peixes parecem saltar das telas. Um quadro representando dois cães - os labradores do Conde de Moiseul - é, ao mesmo tempo, o limite da representação realista do retrato na pintura e a sua subversão, pelos próprios modelos em cena.
Quando pinta o nu, Courbet foge ao modelo das belas mulheres proporcionadas. Ele pinta uma mulher gorda e nua - de costas -, imagem que poderia ser grotesca se a tensão do corpo não provocasse devaneios eróticos no espectador. Essa fase do nu transgressivo atinge seu ápice n' A Origem do Mundo. As cenas de caça, iniciadas em 1857, compõem a parte mais estranha e original de sua obra. Courbet era, ele próprio, caçador, mas seria puramente anedótico explicar dessa forma sua atração pelo tema que não era freqüente na pintura francesa. Seus cervos caçados, feridos ou que se batem entre si são imagens impressionantes (e metafóricas) da vida selvagem. Courbet envia alguns desses quadros às grandes exposições de Paris. São eles, mais do que quaisquer outros, que revelam seu desejo de reconhecimento. Uma briga de cervos, no contexto da grande floresta, dificilmente terá deixado de ser referência para os desenhistas da Disney, quando fizeram Bambi, uma animação clássica de 1942.
Autor de manifestos, o pintor foi um homem que viveu os grandes combates de seu tempo. Ele se integrou à Comuna de Paris. Fazendo parte do novo conselho republicano - como representante dos artistas -, ele comandou a destruição da coluna que Napoleão erigira para si mesmo. Isso terminou sendo motivo de repetidas perseguições, quando da restauração do império. Courbet foi preso e intimado a pagar pelo prejuízo. Seus bens foram arrestados e o tribunal fixou a data de 1º de janeiro de 1878 para que Courbet depositasse o dinheiro relativo à restauração do monumento. Metaforicamente, pode-se dizer que ele, republicano e realista, radicalizou o não ao velho (mesmo que de novo vitorioso) regime, como à arte acadêmica. Courbet morreu em 31 de dezembro de 1877, aos 57 anos (nasceu em 1819). A grande exposição do Grand Palais o restabelece, em definitivo, entre os grandes da pintura, de todos os tempos.
Ver também aqui no blog:
Gustave Courbet, un peintre radicalUma pintura: Gustave Courbet
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