Qual mosquito picou a mídia?
Uma luz nas motivações febris da imprensa
As questões levantadas sobre o pânico provocado pelo boato sobre "epidemia" de febre amarela são esclarecedoras sobre a maneira e os motivos pelo qual, uma boa parte da mídia, incentivou a "corrida" pela vacina.
Hoje o jornal O Estado de São Paulo entrevista o historiador José Murilo de Carvalho, tentando desvendar o motivo da população ter considerado que devia correr aos postos de vacinação. A resposta é " desconfiança na palavra do governo". O jornal limita-se a perguntar, com objetividade e as reflexões são do entrevistado.
Em 15 de janeiro, depois do pronunciamento em cadeia nacional do Ministro da Saúde sobre a questão, o editorial do Estadão concluía:
"Hoje, com a revolução da tecnologia, as informações de todo tipo, inclusive as científicas e as que dizem respeito à saúde e à higiene estão ao alcance até dos analfabetos. Mas, até por ter fácil acesso às informações de todos os dias que desmoralizam governos ao exporem a facilidade com que costumam enganar o povo, é perfeitamente compreensível a desconfiança da população, quanto a desmentidos oficiais de problemas. E isso vale tanto para desmentidos de risco de apagões como de risco de epidemias. Resta esperar que a população seja capaz de se convencer da ausência de risco com o conhecimento das notícias sobre o número ínfimo de casos confirmados de febre amarela."
Um aberto chamado a desconfiar da informação e verdadeiro incentivo ao corre, corre.
Durante os primeiros dias de janeiro cada intervenção do Ministro da Saúde para transmitir informação clara e segura sobre o tema levava quase sempre o termo epidemia na manchete. "Ministro nega epidemia... após novos casos e mortes...". A articulista Eliane Cantanhêde, da Folha, gritava com todas suas forças:
"Com sua licença, vou usar este espaço para fazer um apelo para você que mora no Brasil, não importa onde: vacine-se contra a febre amarela! Não deixe para amanhã, depois, semana que vem... Vacine-se logo! "
Hoje o Estadão nos informa que "País vive "revolta da vacina"às avessas" e que "há mais gente com efeito colateral das doses do que com suspeita da febre".
E a culpa seria do governo?
A "epidemia" de febre amarela e o "apagão" da eletricidade foram os grandes temas da mídia deste começo de 2008. Cada negação do governo era posta na conta de querer esconder a incompetência, negando a evidência. Tínhamos epidemia e não tínhamos luz esse era o mantra.
Agora já não temos epidemia, mas para alguns jornais ainda não temos luz, mesmo assim podemos pelo menos ler e saber como somos (des) informados.
Luis Favre
'A população evoluiu nessa questão, o governo, não'
O Estado de São Paulo
Entrevista
José Murilo de Carvalho: historiador
Estudioso acredita que pessoas compreenderam a importância da vacina, mas ainda não confiam no discurso das autoridades
Lígia Formenti, Brasília
Para o historiador José Murilo de Carvalho, a recente corrida da população pela vacina contra a febre amarela reflete um grande avanço da sociedade brasileira. O mesmo não se pode dizer, porém, do governo. “A população evoluiu, o governo não.” Murilo de Carvalho, que estudou o conflito no Rio em 1904 conhecido como “revolta da vacina”, observa que, nos dois momentos, a população demonstrou uma profunda desconfiança diante do discurso feito pelas autoridades. Tal descrédito é fruto da própria atitude do governo. A seguir, principais trechos da entrevista concedida ao Estado.
Vivemos o inverso da “revolta da vacina”?
O movimento de agora reflete uma grande mudança da postura popular em relação à vacina. No começo do século passado, havia uma decisão tomada legalmente pelo Congresso para vacinar pessoas, visitar casa por casa. Uma prática com a qual o povo não estava acostumado, que provocava grande desconfiança e descontentamento. Ninguém queria que o governo entrasse em sua casa. Além disso, havia um medo grande em torno das reações que a vacina poderia provocar.
E hoje, o que ocorre?
A desconfiança com relação à vacina obviamente acabou. Isso é um enorme progresso da opinião pública. As pessoas sabem que a vacina é um instrumento importante, que ela é segura. Mas a desconfiança de antes se mantém. Agora, o governo diz que não há epidemia, que não é preciso que todos se vacinem, mas o povo não acredita. Avalio que a opinião pública progrediu. Hoje as pessoas pedem, entendem o poder da vacina e cobram do governo. Mas se mantém uma percepção de que políticos não são confiáveis.
A que atribui essa desconfiança?
Uma longa tradição do governo, confirmada pela história recente. E isso vale para todos os poderes. No Executivo, por exemplo. Antes se garantiu que não ocorreria caos aéreo. E o caos aéreo se instalou. Depois se garantiu que não haveria aumento dos impostos. O governo diz e logo depois se desmente. O que mostra haver uma enorme distância entre poder público e povo.
Como se dá essa distância no caso da febre amarela?
Ela existe mesmo num governo eleito democraticamente. E as pessoas têm essa percepção, demonstram claramente que a desconfiança é enorme. Para resumir: é uma fraqueza da nossa democracia.
E como isso pode ser revertido?
É um processo lento. Nossa democracia é muito jovem. Outros países demoraram séculos para alcançar esse estágio. É preciso eleger grupos, ver que eles não estão funcionando, não reelegê-los. A expressão do descontentamento na hora do voto.
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