terça-feira, 29 de janeiro de 2008

A redescoberta das virtudes do gasto público

Rui Falcão

por Rui Falcão

O conjunto de medidas propostas pelo governo Bush para debelar o risco de recessão na economia norte-americana —, induzido pela crise no setor de crédito imobiliário (empréstimos podres), com ramificações pelas artérias do sistema financeiro — vai na direção oposta à do receituário neoliberal imposto aos países em desenvolvimento nas décadas passadas.

Como se recorda, a palavra de ordem então brandida pelos organismos multilaterais de crédito (FMI, Banco Mundial, etc.), pelos chamados operadores do mercado, pelos yuppies encastelados nas repartições econômicas do governo FHC e por acadêmicos colonizados era “contenção do gasto público”. Essa era uma das diversas medidas adotadas no “ajuste estrutural”, cuja retórica visava a sanear a economia desses países, devolvendo-lhes as condições macroeconômicas para a retomada do crescimento. Já o pacote anunciado por Bush propõe o oposto – o aumento do gasto público — mediante estímulo à expansão do consumo — , como meio de gerar demanda a partir do que lorde Keynes chamava de efeito multiplicador do gasto.

O pressuposto keynesiano aqui implicado é que se cabe ao Estado desempenhar algum papel na economia é o de atuar como interventor em última instância no processo de acumulação do capital, para assegurar a sua retomada, sempre que as incertezas no mercado desestimulam o investimento das empresas e o consumo das famílias. Essa é a situação que se esboça neste momento na paisagem econômica norte-americana.

Quem, senão o Estado, se disporia a aumentar o seu consumo ou investir num momento de crise, quando a racionalidade de qualquer investidor privado recomenda cautela e contenção, até que se vislumbrem dias melhores no horizonte — até que se retorne à “normalidade”. Segundo o keynesianismo — doutrina execrada pelos aliados, mentores e áulicos do governo FHC — a “normalidade” do processo de acumulação pressupõe a existência de um ator dotado de uma racionalidade distinta da do ator privado, e esse é o Estado. Para os keynesianos, o Estado é racional quando atua funcionalmente no atendimento das necessidades do processo de acumulação — por isso, não faz sentido falar-se em “Estado mínimo” na ótica neoliberal, pois também aqui o Estado é máximo na defesa da continuidade da acumulação.

(Parêntesis: Lembro o leitor de que não estou a falar de gasto público na mesma acepção assumida por certos ‘analistas’ da grande mídia. Para estes, em geral, gasto público é sinônimo de desperdício nas despesas governamentais ou do Estado em rubricas como aquisição de copos e talheres para os servidores do Palácio do Planalto, cafezinho nas repartições públicas, aposentadorias e pensões, papel higiênico e outras miudezas (ou “graudezas”) de consumo corrente, sobre cuja denúncia se comprazem, esquecendo-se de que, se há algo escandaloso no gasto público é o montante de juros pagos no serviço da dívida pública. Gasto público, no jargão econômico, refere-se ao montante de recursos públicos despendidos pelo Estado na ampliação da infra-estrutura, na melhoria dos serviços essenciais, como defesa nacional, pagamento dos serviços da dívida (juros), implementação das políticas públicas, como educação e saúde ... e também nas despesas correntes.

Pois então Tio Sam vai aplicar na própria casa o arsenal de medidas econômicas de caráter anticíclico, para evitar os malefícios sociais de uma recessão, medidas jamais autorizadas pelo FMI aos países abaixo do Equador. E é de enfatizar que o faz tendo na lembrança a adequação e os bons resultados das políticas keynesianas que estão na origem do período que se tornou conhecido como a “idade de ouro do capitalismo” e que consistiram em sustentar o círculo virtuoso do processo de acumulação, gerado a partir do efeito multiplicador do gasto público.

Em contraste, em nossas latitudes ainda é fresca a lembrança dos efeitos catastróficos do receituário neoliberal sobre as condições sociais das populações da América Latina e de outros continentes. Ainda por muito tempo teremos de pagar os enormes custos sociais e econômicos resultantes das políticas de ajuste estrutural (leia-se, em resumo: contenção do gasto público), entre os quais o mais em voga são as seqüelas da deterioração da infra-estrutura, cuja responsabilidade é atribuída equivocadamente ao governo Lula.

À medida que se continha o gasto público, para gerar superávit fiscal para o pagamento dos juros, ao limite suportável do sacrifício imposto às populações, as condições sociais e econômicas se deterioravam — aumento do desemprego, queda no poder aquisitivo dos salários, deterioração dos serviços públicos, agravamento da pobreza e aumento da exclusão social.

É sabido que os governantes são tentados a gastar mais do que arrecadam — daí a Lei da Responsabilidade Fiscal. Mas é preciso discriminar entre gasto público produtivo e improdutivo, discriminação que somente no primeiro governo Lula o FMI, pressionado, admitiu reconhecer. Até então, ou seja, ao longo do período FHC, ao que se assistiu foi o retrocesso do gasto público em setores essenciais, do qual a crise do setor elétrico é um exemplo notável.

O sistema elétrico brasileiro, como é sabido, está baseado na geração de hidreletricidade. Entre 1960 e 1990, o Brasil construiu um dos sistemas de geração de energia elétrica mais eficientes e competitivos do mundo. Além disso, a energia hidrelétrica, que participa com 80% na matriz energética, é renovável.

Ao privatizar, o governo FHC desmantelou um sistema integrado de geração e distribuição de energia e manteve em mãos públicas somente o componente menos rentável — a geração. Sob a orientação do FMI, com o objetivo de estimular a privatização do setor energético, incluiu nos gastos que compunham o orçamento público e caracterizavam o déficit fiscal, os investimentos públicos em eletricidade e petróleo. Assim, com a redução dos investimentos públicos e a privatização, justificou-se a perseguição da meta do superávit fiscal — para o pagamento dos juros da dívida.

Essa estratégia implicou cortes drásticos nos investimentos em geração de energia, de tal forma que em 2001 os brasileiros começaram a sentir o que significa redução indiscriminada do gasto público, ao pagar tarifas elevadas pelo consumo de energia e sofrer as conseqüências do apagão. Como resultado do racionamento de energia, caíram as taxas de crescimento econômico e de investimento privado.

A crise do setor elétrico, ao deteriorar a economia, converteu-se em termos políticos no maior desastre da gestão tucana, e sacudiu a credibilidade das políticas econômicas neoliberais no país, em contraste com as promessas de seus operadores. Lembre-se de que a privatização fora apresentada como panacéia para debelar a ineficiência do gasto público e provê-lo de transparência.

O resultado é que o povo passou a despender mais por um serviço igual ou pior, enquanto as inversões esperadas do setor privado se reduziam, em que pese o “saneamento” do gasto público promovido por FHC, sob a batuta do FMI. O golpe final na credibilidade veio em dezembro de 2001, quando se tornou público que os contratos firmados entre o governo FHC e as empresas de energia privatizadas incluíam uma cláusula de reajuste do preço em caso de queda no consumo. Assim, o consumidor viu-se forçado a pagar mais por ter de consumir menos. Foi a apoteose do receituário neoliberal.

Do que se pode concluir que o que não é bom para o Brasil também não é bom para os Estados Unidos.


Rui Falcão, jornalista e deputado, 64 anos, é deputado estadual. Foi secretário de governo na gestão Marta Suplicy, presidente do PT e deputado Federal.

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