sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

O corte parece pequeno, mas não é

Este artigo é um pouco árido de leitura, pela temática abordada, porém vale a pena para entender o fundo da discussão sobre carga tributária e corte do gasto público. Ele ilustra bem o que tentei explicar o outro dia a um amigo empresário, preocupado com razão, pelo nível da carga tributária e que considerava um erro o governo federal aumentar o IOF. Como da parte dele não existia qualquer preconceito em relação ao governo Lula e seus argumentos eram consistentes, gostaria contribuir no meu blog para aprofundar esta discussão. LF

Jornal Valor



Há muito tempo que o governo federal lida com a rigidez do Orçamento da União, em função do caráter obrigatório atribuído por diversas normas legais, direta ou indiretamente, a uma série de despesas. Mas a dificuldade de cortar gastos para garantir o cumprimento de metas de superávit primário - imprescindíveis ao controle do endividamento público, uma vez que asseguram recursos para pagamento de juros - nunca foi sentida antes de forma tão contundente como agora, após a morte súbita da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). Pelo menos desde que foram criados mecanismos de desvinculação de receita da União, ainda no primeiro governo Fernando Henrique, a rigidez orçamentária nunca atrapalhou tanto.


Diante da necessidade de cobrir o rombo de quase R$ 40 bilhões na proposta orçamentária para 2008, ficou patente que, embora tenham trazido um alívio (sem eles seria muito pior), a DRU e seus antecessores não foram suficientes para dar a flexibilidade necessária à preservação de investimentos. Como, por restrições legais, os gastos correntes quase não podem ser comprimidos, os investimentos, que eram de quase R$ 30 bilhões na proposta original, de novo, serão os mais prejudicados pelo corte, admite o ministro do Planejamento, Paulo Bernardo.


O aumento de tributos anunciado por ele e pelo ministro da Fazenda, Guido Mantega, anteontem, que deverá proporcionar receita extra de R$ 10 bilhões, pode até ser questionado. Mas é preciso ponderar que um esforço de R$ 20 bilhões do lado da despesa não é pouca coisa, justamente por causa da rigidez do Orçamento. Diante do volume total de despesas primárias previstas no projeto de lei encaminhado ao Congresso (cerca de R$ 519 bilhões), o corte proposto parece pequeno, pois representa apenas 3,85%. Parece, mas não é.


Excluindo o Projeto Piloto de Investimentos, as despesas discricionárias, isto é, não obrigatórias, somam apenas R$ 41,6 bilhões, dos quais R$ 35 bilhões do governo e R$ 6,6 bilhões do Legislativo, Judiciário e Ministério Público, informa a Secretaria de Orçamento Federal (SOF). Em relação ao universo passível de compor o ajuste, portanto, um corte de R$ 20 bilhões representa quase metade (48%). É preciso lembrar ainda que todo o custeio da máquina administrativa, que não pode simplesmente parar, estão nesses R$ 46,1 bilhões.


Os R$ 13,85 bilhões do PPI estão fora dessa cifra porque não faz sentido considerá-los. Embora tais gastos também sejam discricionários, cortá-los seria inútil para efeitos do ajuste do Orçamento. Afinal, a meta de superávit primário, cuja preservação é a razão de ser do ajuste, varia de acordo com o nível de execução do PPI. Sem o PPI, a meta subiria.


Gastos obrigatórios passam de R$ 461 bi


Entre as obrigatórias, as despesas de pessoal são estimadas em R$ 130,03 bilhões. Uma pequena parcela disso, de até R$ 3,7 bilhões, pode ser suprimida do Orçamento, pois corresponde à reserva feita para pagamento de aumentos salariais negociados com o funcionalismo público. Essa despesa ainda não foi contratada, pois os respectivos projetos de lei não chegaram a ser enviados ao Congresso. E, numa decisão acertada, por enquanto, o governo nem pretende enviá-los.


Incluindo o que foi reservado para novas contratações, também suspensas até segunda ordem, o governo pode reduzir em até R$ 4,84 bilhões suas dotações para pessoal no Orçamento de 2008. Se essa reserva for mesmo usada para compor o ajuste, o corte nas discricionárias cai para cerca de R$ 15 bilhões. Ainda assim, isso representaria percentual expressivo: 36%.


Os gastos com benefícios da Previdência Social, que exigirão desembolso de R$ 198,7 bilhões em 2008, são os mais pesados entre os obrigatórios. Outros R$ 60,7 bilhões estão reservados para uma série de outras despesas obrigatórias, entre as principais, o pagamento do abono PIS-Pasep e do seguro desemprego (R$ 19,12 bilhões), benefícios da Lei Orgânica de Assistência Social (Loas, R$ 13,43 bilhões) e subsídios já contratados (R$ 10,13 bilhões), como equalização de juros do crédito rural, por exemplo.


Há ainda, segundo a SOF, um quarto grupo de gastos que não podem ser cortados, de R$ 72,4 bilhões. Embora apareçam como discricionárias nas tabelas de apresentação do resultado primário do Orçamento, essas despesas na prática também são obrigatórias, pois não podem ser suprimidas sem prévia mudança de legislação. Estão nessa conta, por exemplo, R$ 42,5 bilhões da Saúde, na qual a Constituição Federal exige um patamar mínimo de aplicação de recursos, e, ainda, parte dos gastos com educação decorrentes de vinculação de receita.


A lista inclui ainda despesas obrigatórias pela Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), entre elas os benefícios assistenciais do Programa Bolsa Família e investimentos e custeio em ciência e tecnologia. Mesmo que não houvesse a LDO, o governo não cortaria o Bolsa Família, pois acha que seria uma insanidade tirar, do dia para a noite, uma importante, se não a principal, fonte de sustento de mais de 11 milhões de famílias pobres. Nesse ponto, tem razão. Esse é o tipo de programa que precisa de planejamento e tempo para ser extinto, pois seu fim a curto prazo poderia ter efeitos sociais devastadores.


A redução de despesas e o aumento de impostos não cobrem o rombo deixado pela CPMF. Os quase R$ 10 bilhões que faltam terão que ser resolvidos com reestimativa de receita. Isso exige de deputados e senadores abrir mão de pelo menos parte da receita extra apontada pelas duas reavaliações já feitas pelo Congresso e que seria usada para emendas parlamentares. É uma demanda bastante razoável do Executivo, já que foi o Congresso que tirou-lhe a CPMF. Excluindo a arrecadação da CPMF, que já tinha sido reestimada para baixo, essas duas reavaliações apontaram um extra de R$ 17,3 bilhões, líquidos de transferências constitucionais a Estados e municípios. Mesmo contribuindo com o ajuste, os parlamentares ainda teriam espaço para manter parte das emendas, portanto.

Mônica Izaguirre é repórter especial em Brasília

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