terça-feira, 3 de julho de 2007

Colcha de fuxicos

João Carlos Salles para Terra Magazine

A Bahia, dizem alguns, é lugar propício à fofoca e ao boato, como costuma acontecer em sociedades mais tradicionais. Há semanas, por exemplo, corre entre nós o boato da morte de ACM, boato que vem de todos os lugares e se propaga com enorme velocidade. E, com a propagação, cresce em fantasia - como na convicção de que já estaria morto, mas que, em pura cisma conspiratória, a notícia só seria revelada ao 2 de julho, dia da independência da Bahia, quando até o sol (até o sol!) é brasileiro.

ACM é o sujeito de fofocas que circulam
há semanas acerca de sua suposta morte

Uma certa indolência conspiratória é forte entre nós e nos leva a suspeitar de toda versão oficial e a tomar por retórica toda narrativa, mas seria exagero pensar que boato, mexerico, fuxico e fofoca sejam prerrogativas especialmente baianas. Vale lembrar a experiência de Marilena Chauí à frente da Secretaria de Cultura de São Paulo: "Esse tipo de coisa era o cotidiano. Então também fiz uma assembléia sobre o poder antidemocrático da fofoca e do boato. Aí foi o caos completo, porque na cabeça deles o boato e a fofoca são o circuito da informação. Eu dizia para eles: "Isso é a desinformação e a contra-informação que impedem que circule a informação, e se a informação não circular a secretaria não será democrática". Eles não entendiam nada, achavam que eram informadíssimos."

Com efeito, como seu alvo não é a verdade, mas sobretudo o verossímil, a fofoca e o boato alimentam-se do que parece verdadeiro. Sua força não brota de um problema que solicita nossa consideração: ela antes advém de um preconceito que facilmente se propaga, transformando em evidência suspeitas nas quais estaríamos desde sempre predispostos a crer. Por isso, ela não costuma oferecer um caminho autêntico para o real, mas sim um permanente desvio. Não desvela, mas sim oculta - em sua loquacidade silenciosa, em seu elevado plano de bastidor.

Sendo mais que uma mera instituição baiana, não deixa de também ser nosso o fuxico; útil, o "indaka de kafurungonga" (língua tão grande que pode furar qualquer atabaque); eficiente, o "correio nagô". Tal mecanismo de circulação de bens simbólicos é inevitável e até útil, sendo passível de estudo por bons antropólogos. Por outro lado, se todos convivemos (e bem gostamos de conviver) com uma certa dose de fuxico, sabemos quão doentio é seu exercício desmedido.

Repartições públicas, departamentos, escritórios, empresas, podem ser uma panacéia para patologias individuais, das quais se alimentam e às quais reforçam. Nessas situações, o controle e a reprodução das informações podem beirar o fascismo, pretendendo fazer valer como verdade o que tem apoio em uma interpretação viciosa dos fatos.

A doença pode ser diagnosticada facilmente, uma vez que aparece quando a fofoca não serve à instituição, sendo um instrumento para dominá-la. E, quando repetida e persistente, podemos suspeitar, ela oculta não só o real mas também algum interesse ferido - alguma vaidade magoada e sem grandeza, que indigita para proteger-se ou afirmar-se. A instituição padece, portanto, quando não há regras claras de sociabilidade, gerando-se polêmica e não debate. A fofoca, então, sendo uma delícia entre iguais, é arma de domínio de poderosos ou ardil destruidor do baixo clero.

Porém, mais que naturalmente destrutiva, a fofoca é reacionária. Quem fofoca confidencia. Desse modo, faz suspender o juízo, a capacidade crítica até de pessoas as mais inteligentes, nivelando por baixo a desigualdade. Por isso, nunca há resistência, nunca há reação, como se as pessoas temessem sua exclusão do circuito de "informações", como se, por sua reação, estivessem ameaçadas de ostracismo ou deixassem de participar do círculo de confiança de quem porventura está em uma posição superior. Assim, o empregado não resiste à versão do chefe, o estudante está predisposto a aceitar a versão do professor, o orientando a do orientador, o empregado a do patrão.

A fofoca opera então como uma forma derivada de assédio moral, contando para sua "verdade" com a anuência prévia, com a cumplicidade entre quem ouve e quem fala, porquanto reforça laços constituídos, prepara e preserva hegemonias. Sua força institucional está em diminuir a resistência de quem a aceita. Não acreditar, afinal, seria desconfiar, seria perceber intriga em quem simula inocência.

Sem uma medicina, sabemos bem, é obra do acaso a distinção tênue entre o veneno e o remédio. Em que medida as pequenas doses, salutares, tornam-se peçonhentas? Como separar o fuxico indispensável da transformação da fofoca em mero instrumento político? Difícil saber, embora já envolva alguma dignidade, na falta de outros mecanismos de resistência a essa banalidade intelectual, simplesmente "não dar ouvidos", ao menos enquanto não se criam outros circuitos, mecanismos públicos de reflexão sobre nossas regras de sociabilidade e nossos critérios de competência.

Quem fofoca fala em tom macio e cúmplice. Ao mesmo tempo, fala em tom de revelação, como se trouxesse uma luz nova e, com isso, um olhar mais inteligente. A palavra árida do real, com seu narrador kafkiano, parece interrompida por tiradas de um Oscar Wilde.

A fofoca é doce, ou talvez cítrica. Saborosa em pequenas doses, areja o ambiente e lhe acrescenta uma nota dissonante ou crítica, servindo às vezes para a circulação de informações e mesmo à construção de sociabilidade. Afinal, ela nos modula a todos como humanos, aproxima nobres e plebeus e nos lembra enfim que nunca somos de todo sérios.

Entretanto, em grandes e contínuos goles, quando se torna o meio preferencial para formação de opiniões, é puro veneno. Quando tudo se sabe por mera fofoca, quando tudo é boato, informação e fantasia se confundem, nada se sabe ao certo, e toda sociabilidade fica à mercê de artifícios e sempre na iminência de uma cizânia.

* CHAUÍ, Marilena, "Entrevista", in Caros Amigos, Nº 29, São Paulo, Casa Amarela, agosto 1999, p. 26.

João Carlos Salles é professor do Departamento de Filosofia da UFBA e publicou os livros A Gramática das Cores em Wittgenstein e O Retrato do Vermelho e outros ensaios.

Fale com João Carlos Salles: joaocarlos.salles@terra.com.br

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