domingo, 13 de janeiro de 2008

A reinvenção da mulher

Simon de Beauvoir no Cafe Les deux magots - foto Robert Doisneau
No centenário de nascimento, a filósofa francesa Simone de Beauvoir, autora de O Segundo Sexo, é lembrada como pioneira do feminismo moderno

Gilles Lapouge

O Estado de São Paulo

Simone de Beauvoir, morta em 1986, teria completado 100 anos em 9 de janeiro de 2008. Ilustre, companheira de Jean-Paul Sartre, filósofa e escritora, mais célebre na América que na França, ela continua sendo a autora que dividiu em duas a história das mulheres, em 1949, quando disse ao planeta estupefato: “Não se nasce mulher. Torna-se.” Está em seu livro O Segundo Sexo, que será relançado pela Nova Fronteira em março, seguido de Os Mandarins, abrindo a série de reedições da obra da autora, com novas traduções. “A verdadeira mulher é um produto artificial que a civilização fabrica como outrora se fabricavam os castrati. Seus pretensos instintos de coqueteria, de docilidade, lhe são insuflados como ao homem é insuflado o orgulho fálico.” Na Paris efervescente, exaltada e embriagada do pós-guerra, desaba subitamente essa obra filosoficamente poderosa (Beauvoir ficou em segundo lugar no concurso para professora-adjunta de filosofia, atrás apenas de Jean-Paul Sartre, em 1929). O livro foi recebido com vociferações de ódio ou de devoção.

François Mauriac ficou indignado. “Doravante”, disse ele a um colaborador da revista Les Temps Moderns, “eu sei tudo sobre a vagina de sua senhora.” Os comunistas não foram mais inteligentes: O Segundo Sexo provocaria muitas gozações dos operários de Boulogne-Billancourt, eles disseram. E Albert Camus, o amigo Camus, um verdadeiro falocrata impenitente, resmungou: “Ela quis desonrar o macho francês.” A esse concerto de bobagens responde um outro concerto, o de muitas mulheres para as quais O Segundo Sexo abriu a porta da esperança. Vinte mil exemplares vendidos em uma semana. Traduzido para o hindi, o chinês, o russo. Ele se tornou o livro de cabeceira das mulheres, ao lado do admirável Um Teto Todo Seu, de Virginia Woolf.

Quarenta anos se passaram. A violência desse livro se evaporou pela boa razão que o mundo não é mais o mesmo e que a posição da mulher na sociedade, embora ainda esteja longe da igualdade, não é tão aviltada como em 1949, em parte, talvez, graças a Beauvoir. Mesmo as feministas mais radicais de 2007, embora falem com indulgência de “mami Simone”, admitem, como a autora de Queer Zones, Marie-Hélène Bourcier: “Isso não impede que Simone de Beauvoir tenha sido a primeira a mostrar que a masculinidade não estava restrita aos homens, que ela é um signo racial e cultural acessível a todos. E isso é absolutamente revolucionário.” Curiosamente, a figura de Beauvoir permanece em 2008 totalmente iluminada por seu sexo. As pessoas costumam esquecer que ela foi uma romancista de mérito (O Convidado, Os Mandarins, etc.), uma combatente política ainda que tardia (porque, como Sartre até 1945, e apesar da guerra, ela sobrevoou a política sem compreender nada dela), tardia mas corajosa, às vezes, até delirante e tola (URSS, Cuba, Mao Tsé-tung, etc.).

Mais paradoxal ainda: essa mulher, que tantas mulheres louvaram por desvelar o império falocrata de um mundo rudemente masculino, é pela sua qualidade de “apaixonada” que ela hoje irradia. E, primeiro de tudo, apaixonada por Jean-Paul Sartre com o qual forma, ainda muito jovem, um casal fascinante: ela tão bela e tão inteligente, ele tão feio e tão genial. E esse “pacto”: Sartre e Simone decidem que eles vivem um “amor necessário”, mas que isso não os impedirá de ter “amores contingentes”.

Em termos filosóficos, isso está bem formulado para exprimir que eles se deitam a seu bel-prazer, sem ofender o outro, mas com a promessa de contar tudo um ao outro. Por muito tempo esse pacto foi interpretado como algo que beneficiava o homem. Como em filosofia e em literatura, com freqüência se quis fazer de Beauvoir “a sombra de Sartre”, emprestou-se a Sartre uma liberdade sexual desregrada, enquanto a antiga jovem burguesa Simone, por mais revolucionária que fosse, ficaria paralisada por seus interditos e princípios.

Sua maneira de ser já o sugere: bela, mas “vestida como o ás de espada”, com aquele turbante nos cabelos, aqueles tecidos ásperos, aquela voz seca, desagradável. Tudo indica a ascese, o recato, o rigor moral, a austeridade. Nenhuma vertigem, nenhum romantismo.

Nada mais falso, porém. Curiosamente, depois de sua morte, uma nova Beauvoir se revela. É o caso de dizer: uma mulher “apaixonada”. Ela vive oito anos com Claude Lanzmann, autor de Shoah, fica louca pelo “pequeno Bost”, um antigo aluno de Sartre. E tem uma aventura americana com o belo Nelson Algren, o escritor de Chicago que ela “ama com todo seu corpo” e que não compreende nada dessa casuística dos “amores necessários e dos amores contingentes”. “Por aqui, as prostitutas chamam isso simplesmente de programa”, ele resmunga. Bobo ele não era...

Ela, ligada por completo à sua presa, promete a Algren, nos anos 1950 (muito depois de O Segundo Sexo, portanto): “Serei boazinha. Lavarei a louça, eu própria irei comprar os ovos e o bolo com rum, não tocarei em seus cabelos, em suas faces ou seus ombros sem autorização. Jamais farei coisas que você não gostaria que eu fizesse.” A gente esfrega os olhos. Será a autora de O Segundo Sexo, aquela que despertou milhões de mulheres, que as desvairou, que as lançou na liberdade e na revolta, a mesma que escreveu essas frases de costureirinha, de esposa boa e obediente? Sim. É a mesma. Pasmo geral.

E isso não é tudo. Simone, longe de se contentar com amores masculinos, muitas vezes agiu como uma amazona, ávida pelos corpos de mocinhas. Ela ensinara filosofia. Uma professora dos sonhos. Ela se interessa pelas boas alunas, contanto que fossem bonitas. Olga é seduzida, depois Wanda, depois Bianca. E depois... Será que ela as amava? Ou será que vivia aqueles “amores contingentes” para agradar ao “amor necessário”, a Sartre? Uma delas mais tarde se vingou: “Descobri que Simone de Beauvoir pescava nas suas classes de garotas uma carne fresca que ela provava antes de a entregar, ou seria o caso de falar ainda mais grosseiramente, antes de arrastar para Sartre... No fundo, eles eram voyeurs.” Nada brilhante. Mas essa frase talvez seja a vingança de uma amante rejeitada. Mas esse gosto pelas mocinhas é incômodo da parte de uma Simone de Beauvoir que sempre negou ser homossexual ou bissexual. Essa omissão, essa negação, é lamentável, sobretudo partindo de uma pessoa que sempre se jactou de nunca mentir, de estar acima da mentira, e que sempre aceitou passar por “escandalosa”. Por que esse silêncio sobre as garotas? Tudo isso compõe uma figura vasta, cheia de contrastes. Admirável e heróica até, poderosa, muito frágil, marcada por uma divisão, loucamente tolerante e ciumenta até a loucura, austera e desvairada.

Compreende-se que um quebra-cabeça com tantas peças possa causar perplexidade. Sobretudo para as mulheres. E entre as mulheres, sobretudo para as feministas, algumas das quais rendem homenagem eterna àquela que situam no limiar mesmo da revolução feminina do século 20, enquanto outras a tratam como uma “boa mulher” ultrapassada. Diz Antoinette Fouque, das Éditions des Femmes: “Se ser feminista é querer ser um ‘homem como outro qualquer’ como queria, de fato, Beauvoir, então não, eu decididamente não sou uma feminista.” Uma foto levou ao auge o furor de algumas feministas. Le Nouvel Observateur publicou um retrato de Simone. Uma Simone nua, totalmente.

Cólera de algumas variantes de feministas. Vergonha sobre Simone de Beauvoir. Nós a vemos de costas, no banheiro de um hotel de Chicago (na época de Algren) nos anos 1950. Diante de seu espelho, de costas. Ela levanta seus cabelos. O talhe é fino, arqueado, elegante. Para mim, ela pareceu muito bela, mas, claro, trato de ficar quieto.

TRADUÇÃO DE CELSO MAURO PACIORNIK

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