segunda-feira, 14 de janeiro de 2008

Efemérides: Beauvoir, Brel e Lévi-Strauss

Fernando Eichenberg

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Caricatura de Claude Lévi-Strauss,
um dos franceses que serão lembrados em 2008



Este início de 2008 sinaliza alguns personagens que serão relembrados ao longo do ano na França por obra de datas comemorativas. O primeiro deles é a filósofa e escritora Simone Beauvoir, ícone do feminismo mundial, cujo centenário de nascimento foi celebrado no último 9 de janeiro. E, como é do gosto dos franceses, não sem alguma polêmica. A controvérsia foi lançada pela capa do semanário de esquerda Le Nouvel Observateur, que estampou em uma foto de página inteira a companheira do filósofo Jean-Paul Sartre de costas, em pé, diante do lavabo, completamente nua, emoldurada pelo título "Simone de Beauvoir - A Escandalosa". A imagem foi feita em 1952 por Art Shay, íntimo amigo do escritor Nelson Algren, na casa deste, o "amante americano" da filósofa, em Chicago.

A associação feminista Choisir la cause des femmes, fundada e também presidida por SB, acusou a capa da revista de "afronta à imagem e à dignidade das mulheres". A discussão reverberou na blogosfera, em posts por vezes carregados de filosofismos como esse: "O surpreendente desta foto é que ela nos exibe um corpo que não temos o hábito de ver. Porque a mulher é uma filósofa e não temos o hábito de considerar que os filósofos têm um corpo. Confusamente, acreditamos ainda que a filosofia é feita de espíritos".

Polêmicas à parte, neste começo de ano prefiro me lembrar da pensadora não por sua furtada nudez ou por algumas de suas equivocadas escolhas políticas, mas por esse trecho de O Segundo Sexo (1949), marco bibliográfico da condição feminina, que, por razões pessoais, me impregnou em uma primeira leitura de jovem adolescente: "Todo sujeito coloca-se concretamente através de projetos como uma transcendência: só alcança sua liberdade pela sua constante superação em vista de outras liberdades; não há outra justificação da existência presente senão sua expansão para um futuro indefinidamente aberto. Cada vez que a transcendência recai em imanência, há degradação da existência no 'em si', da liberdade em facticidade. Essa queda é uma falta moral se consentida pelo sujeito; se ela lhe é infligida, assume a figura de uma frustração e de uma opressão. Ela é, nos dois casos, um mal absoluto. Todo indivíduo que tem a preocupação de justificar sua existência, a experimenta como uma necessidade de se transcender".

No segundo semestre, dois grandes nomes da música receberão destaque. O dia 9 de outubro assinala os trinta anos da morte do grande Jacques Brel, enterrado ao lado do pintor Paul Gauguin nas Ilhas Marquises, na Polinésia Francesa. Para homenagear o cantor e compositor belga, a fundação que leva seu nome prepara o lançamento de DVDs com versões de canções suas interpretadas por outros artistas. Coletâneas desse tipo, diga-se, são sempre um risco. Para lembrar Jacques Brel na da melhor do que Jacques Brel: http://www.youtube.com/watch?v=uEAGoLHMMoA&feature=related.

No dia 20 do mesmo mês será inaugurada na Cité de la Musique, em Paris, uma enorme exposição sobre o bardo francês Serge Gainsbourg, poeta maldito e músico popular-erudito, que, se vivo fosse, completaria 80 anos em 2008. Dele disse sua efêmera amante Brigitte Bardot: "Era uma vez Gainsbourg, príncipe louco de um mundo demasiado restrito para si. Ele escondia sua vulnerabilidade atrás de uma insolente agressividade que, à imagem de seu coração e de sua face, não representava mais do que parte superficialmente visível desse iceberg fervente e generoso". Para o biógrafo Gilles Verlant, Gainsbourg escondia seu imenso pudor poético sob uma máscara de transtornante obscenidade: "O poeta e o provocador. O tímido e o exibicionista. O esteta e o escatológico. O austero e o pornógrafo. O dândi e o vagabundo. O milorde e o vadio. O chorão e o mata-mouros. O farsista e o desesperado. O burlesco e o trágico. O sonhador e o egoísta. O gênio e o falsário".

De Serge Gainsbourg me lembro quase todos os dias, pois sou praticamente vizinho de sua casa, que lá permanece no 5bis da rue de Verneuil como ele a deixou, fechada com seus móveis e recordações e fotografada todos os dias por turistas e fãs, curiosos pelos grafites coloridos pintados em seus muros brancos, constante homenagem de seus admiradores.

Já no final do ano, no dia 28 de novembro, o antropólogo, etnólogo e pensador Claude Lévi-Strauss comemorará 100 anos de vida. Tive a chance de entrevistar o autor do clássico Tristes Trópicos (1955) em duas oportunidades, em 2004 e 2005, na sua sala do Laboratório de Antropologia Social do Collège de France, no chamado Quartier Latin, em Paris. Em um tom nuançado de nostalgia e renúncia, e com uma naturalidade desconcertante, me dizia já não se sentir um homem deste mundo. "Sou pessimista, hoje, em comparação ao mundo que eu conheci e que amei. Esse, sei bem que acabou, não existe mais. Um outro mundo vai tomar o seu lugar, um mundo que eu não conhecerei. Quando nasci havia 1,5 bilhão de homens sobre a Terra; quando cheguei na Universidade de São Paulo, no início da minha vida ativa, havia 2 bilhões; hoje, há 6 bilhões, e daqui a 20 ou 30 anos haverá 9 bilhões. Não é mais o mesmo mundo e eu sinto que não pertenço mais a ele", disse.

Esse foi o final de nosso segundo e último encontro:

Fernando Eichenberg - Quando o senhor diz que caminhamos em direção a uma civilização em escala mundial, se refere a um regime de "compenetração mútua". O que o senhor quer dizer com isso?
Claude Lévi-Strauss - Quero dizer que desde o final do século 18 a civilização ocidental conscientizou-se de que, por meio de seu poder e de sua força, ela se espalhava por toda a Terra e ameaçava a existência de milhares de pequenas sociedades cujas criações culturais, artísticas, sociais e religiosas eram essenciais para o patrimônio da humanidade. Tudo o que podemos fazer é esperar que nessa espécie de síntese que está sendo feita de uma ponta a outra da Terra apareçam novas diferenças, novas originalidades, em formas que não podemos nem imaginar, e que ajudarão a humanidade a continuar criativa. Mas, é provavelmente culpa da idade, não sou muito otimista.

Em Tristes Trópicos, o senhor escreveu: "A vida social consiste em destruir aquilo que lhe dá o seu aroma". O senhor ainda pensa assim?
Infelizmente, sim.

Mas, como o senhor disse à filósofa Catherine Clément, sua colega, "o coração não envelhece".
Eu gostaria de ter certeza disso.


Fernando Eichenberg, jornalista, vive há dez anos em Paris, de onde colabora para diversos veículos jornalísticos brasileiros, e é autor do livro "Entre Aspas - diálogos contemporâneos", uma coletânea de entrevistas com 27 personalidades européias.

Opiniões expressas aqui são de exclusiva responsabilidade do autor e não necessariamente estão de acordo com os parâmetros editoriais de Terra Magazine.Terra Magazine

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