Efemérides: Beauvoir, Brel e Lévi-Strauss
Fernando Eichenberg
Caricatura de Claude Lévi-Strauss,
um dos franceses que serão lembrados em 2008
Este início de 2008 sinaliza alguns personagens que serão relembrados ao longo do ano na França por obra de datas comemorativas. O primeiro deles é a filósofa e escritora Simone Beauvoir, ícone do feminismo mundial, cujo centenário de nascimento foi celebrado no último 9 de janeiro. E, como é do gosto dos franceses, não sem alguma polêmica. A controvérsia foi lançada pela capa do semanário de esquerda Le Nouvel Observateur, que estampou em uma foto de página inteira a companheira do filósofo Jean-Paul Sartre de costas, em pé, diante do lavabo, completamente nua, emoldurada pelo título "Simone de Beauvoir - A Escandalosa". A imagem foi feita em 1952 por Art Shay, íntimo amigo do escritor Nelson Algren, na casa deste, o "amante americano" da filósofa, em Chicago.
A associação feminista Choisir la cause des femmes, fundada e também presidida por SB, acusou a capa da revista de "afronta à imagem e à dignidade das mulheres". A discussão reverberou na blogosfera, em posts por vezes carregados de filosofismos como esse: "O surpreendente desta foto é que ela nos exibe um corpo que não temos o hábito de ver. Porque a mulher é uma filósofa e não temos o hábito de considerar que os filósofos têm um corpo. Confusamente, acreditamos ainda que a filosofia é feita de espíritos".
Polêmicas à parte, neste começo de ano prefiro me lembrar da pensadora não por sua furtada nudez ou por algumas de suas equivocadas escolhas políticas, mas por esse trecho de O Segundo Sexo (1949), marco bibliográfico da condição feminina, que, por razões pessoais, me impregnou em uma primeira leitura de jovem adolescente: "Todo sujeito coloca-se concretamente através de projetos como uma transcendência: só alcança sua liberdade pela sua constante superação em vista de outras liberdades; não há outra justificação da existência presente senão sua expansão para um futuro indefinidamente aberto. Cada vez que a transcendência recai em imanência, há degradação da existência no 'em si', da liberdade em facticidade. Essa queda é uma falta moral se consentida pelo sujeito; se ela lhe é infligida, assume a figura de uma frustração e de uma opressão. Ela é, nos dois casos, um mal absoluto. Todo indivíduo que tem a preocupação de justificar sua existência, a experimenta como uma necessidade de se transcender".
No segundo semestre, dois grandes nomes da música receberão destaque. O dia 9 de outubro assinala os trinta anos da morte do grande Jacques Brel, enterrado ao lado do pintor Paul Gauguin nas Ilhas Marquises, na Polinésia Francesa. Para homenagear o cantor e compositor belga, a fundação que leva seu nome prepara o lançamento de DVDs com versões de canções suas interpretadas por outros artistas. Coletâneas desse tipo, diga-se, são sempre um risco. Para lembrar Jacques Brel na da melhor do que Jacques Brel: http://www.youtube.com/watch?v=uEAGoLHMMoA&feature=related.
No dia 20 do mesmo mês será inaugurada na Cité de la Musique, em Paris, uma enorme exposição sobre o bardo francês Serge Gainsbourg, poeta maldito e músico popular-erudito, que, se vivo fosse, completaria 80 anos em 2008. Dele disse sua efêmera amante Brigitte Bardot: "Era uma vez Gainsbourg, príncipe louco de um mundo demasiado restrito para si. Ele escondia sua vulnerabilidade atrás de uma insolente agressividade que, à imagem de seu coração e de sua face, não representava mais do que parte superficialmente visível desse iceberg fervente e generoso". Para o biógrafo Gilles Verlant, Gainsbourg escondia seu imenso pudor poético sob uma máscara de transtornante obscenidade: "O poeta e o provocador. O tímido e o exibicionista. O esteta e o escatológico. O austero e o pornógrafo. O dândi e o vagabundo. O milorde e o vadio. O chorão e o mata-mouros. O farsista e o desesperado. O burlesco e o trágico. O sonhador e o egoísta. O gênio e o falsário".
De Serge Gainsbourg me lembro quase todos os dias, pois sou praticamente vizinho de sua casa, que lá permanece no 5bis da rue de Verneuil como ele a deixou, fechada com seus móveis e recordações e fotografada todos os dias por turistas e fãs, curiosos pelos grafites coloridos pintados em seus muros brancos, constante homenagem de seus admiradores.
Já no final do ano, no dia 28 de novembro, o antropólogo, etnólogo e pensador Claude Lévi-Strauss comemorará 100 anos de vida. Tive a chance de entrevistar o autor do clássico Tristes Trópicos (1955) em duas oportunidades, em 2004 e 2005, na sua sala do Laboratório de Antropologia Social do Collège de France, no chamado Quartier Latin, em Paris. Em um tom nuançado de nostalgia e renúncia, e com uma naturalidade desconcertante, me dizia já não se sentir um homem deste mundo. "Sou pessimista, hoje, em comparação ao mundo que eu conheci e que amei. Esse, sei bem que acabou, não existe mais. Um outro mundo vai tomar o seu lugar, um mundo que eu não conhecerei. Quando nasci havia 1,5 bilhão de homens sobre a Terra; quando cheguei na Universidade de São Paulo, no início da minha vida ativa, havia 2 bilhões; hoje, há 6 bilhões, e daqui a 20 ou 30 anos haverá 9 bilhões. Não é mais o mesmo mundo e eu sinto que não pertenço mais a ele", disse.
Esse foi o final de nosso segundo e último encontro:
Fernando Eichenberg - Quando o senhor diz que caminhamos em direção a uma civilização em escala mundial, se refere a um regime de "compenetração mútua". O que o senhor quer dizer com isso?
Claude Lévi-Strauss - Quero dizer que desde o final do século 18 a civilização ocidental conscientizou-se de que, por meio de seu poder e de sua força, ela se espalhava por toda a Terra e ameaçava a existência de milhares de pequenas sociedades cujas criações culturais, artísticas, sociais e religiosas eram essenciais para o patrimônio da humanidade. Tudo o que podemos fazer é esperar que nessa espécie de síntese que está sendo feita de uma ponta a outra da Terra apareçam novas diferenças, novas originalidades, em formas que não podemos nem imaginar, e que ajudarão a humanidade a continuar criativa. Mas, é provavelmente culpa da idade, não sou muito otimista.
Em Tristes Trópicos, o senhor escreveu: "A vida social consiste em destruir aquilo que lhe dá o seu aroma". O senhor ainda pensa assim?
Infelizmente, sim.
Mas, como o senhor disse à filósofa Catherine Clément, sua colega, "o coração não envelhece".
Eu gostaria de ter certeza disso.
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