domingo, 9 de setembro de 2007

Popol Vuh, bíblia do povo maia, ganha tradução



O livro sagrado que sobreviveu ao colonizador espanhol é publicado no Brasil em edição bilíngüe pela Iluminuras

Antonio Gonçalves Filho

Mais que o livro sagrado dos maias, o longo poema Popol Vuh passou à história como um precioso documento nativo da Mesoamérica do século 16. Como tal, é a verdadeira crônica da morte anunciada do povo maia-quiché, que o poder da cristandade varreu do território hoje conhecido como Guatemala. O Popol Vuh sobreviveu ao massacre dos invasores espanhóis, mas não em sua forma original. A cultura quiché passou por tantas metamorfoses que o Popol Vuh hoje conhecido é apenas um espectro do que teria sido, a tal ponto que, a uma determinada altura do poema, culpa-se o leitor por esconder a verdadeira face do texto ancestral. Mesmo assim, a chamada 'Bíblia da América' conserva a força que inspirou tantos bons escritores - Miguel Asturias, Alejo Carpentier e Jorge Luis Borges, entre eles - a produzir textos baseados nos escritos sagrados dos maias. É, portanto, fundamental a primeira tradução integral do Popol Vuh, a cargo do antropólogo e professor Sérgio Medeiros, que será lançada pela editora Iluminuras no próximo dia 20, às 19 h, com uma palestra do tradutor, na Livraria da Vila (Vila Madalena).

O texto, lembra Medeiros, começa e termina reconhecendo o poder da cristandade e do invasor espanhol. De fato, alguns especialistas especulam que ele teria sido escrito 30 anos após os soldados de Pedro de Alvarado terem colocado os pés - ou os cascos - em Quiché, sob as ordens de Hernán Cortés, o conquistador do império asteca. Nativos teriam escrito o poema amparados na transcrição de relatos orais, ou usando como referência cópias de códices antiquíssimos. Espalhando-se pelo mundo, a força mítica do Popol Vuh teve - e conserva - tamanho impacto que até o Macunaíma de Mário de Andrade deve algo à cosmogonia da bíblia maia (Macunaíma transfigurado na Ursa Maior é um simulacro dos Gêmeos do Popol Vuh, que também se tornam estrelas). A epopéia da América inspirou ainda compositores europeus modernos como o francês Edgard Varèse e contemporâneos como o alemão Florian Fricke, autor de todas as trilhas dos filmes de Werner Herzog, que batizou seu grupo com o nome do poema.

Tanta reverência dos europeus dá até para desconfiar, ainda mais que o Popol Vuh é uma resposta sutil ao conquistador espanhol para sua agressiva tomada de território, uma carta de identidade esfregada na cara do invasor para mostrar que ali onde pisava existiu uma história e uma cultura própria, talvez mais rica e menos moralista que a européia. De fato, para o povo quiché, o pensamento dualístico dos europeus, que dividiu céu e inferno, era, no mínimo, risível. O Xibalba, inframundo dos maias, não tem demônios com chifres expulsos do paraíso. Tampouco os moradores do andar de cima temem os debaixo. Aceitam até jogar futebol com eles. Devem, enfim, aprender a conviver com seus duplos infernais e enfrentar a ordem binária. Aliás, tudo vem em pares no Popol Vuh. O homem não passa de uma espiga de milho sabida que cresceu sem aprender a venerar seus criadores (são mais de um na cosmogonia maia).

No princípio, para o Popol Vuh, não era o verbo. Não era coisa nenhuma, aliás. O universo era um desses personagens expectantes e paralisados de Beckett que podem estar tanto diante de um plácido lago como de uma tormenta monumental. No caso dos maias, foi um redemoinho. Ele reuniu fisicamente céu e terra por um ato voluntarioso do deus da tormenta. Como na Bíblia, também o primeiro homem foi criado de barro, a exemplo de Adão. E não deu certo. Não podia inclinar a cabeça, andar, reproduzir e, principalmente, falar. Para o Popol Vuh, quem não fala está morto e por isso os deuses abandonam o ancestral do homem, partindo para uma nova experiência, igualmente malograda.

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Os Herdeiros

De Macunaíma (1928), a epopéia do brasileiro Mário de Andrade, ao romance Hombre de Maiz (1949), do Nobel Miguel Ángel Asturias, passando pelo perturbador conto La Escritura del Dios (da coletânea O Aleph, 1949), do argentino Jorge Luis Borges, são inúmeros os textos literários inspirados no Popol Vuh. Se Macunaíma transfigura-se na constelação da Ursa Maior, a exemplo dos gêmeos do poema maia, o homem do título de Asturias faz referência à quarta criação dos deuses no poema (o homem de milho), enquanto Borges trata da decifração de uma frase sagrada e mágica inserida na bíblia maia.

Borges é o que toca mais profundamente na questão do enigma encerrado no códice pré-colombiano. Por meio da história de um mago confinado na escuridão de um poço, que tenta desvendar o mistério de uma frase inscrita na pele de um jaguar, ele constrói uma parábola exemplar sobre as dificuldades de interpretação de um texto sagrado.

O tradutor Sérgio Medeiros lembra que, assim como Borges fundiu diversas tradições para chegar a esse conto híbrido, o compositor Edgard Varèse agregou antigas palavras indígenas a novos sons eletrônicos para estabelecer um diálogo rico com a cultura ancestral dos maias (em peças como Ecuatorial). Varèse antecipou o procedimento do americano John Cage, que usou o antigo I Ching para compor.

O orientador do tradutor, Gordon Brotherston, lembra ainda que o Popol Vuh inspirou também artistas visuais, destacando os desenhos do mexicano Diego Rivera nas primeiras edições das traduções do poema maia.

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