sexta-feira, 14 de setembro de 2007

Mídia sem luto


Vera Gonçalves de Araújo
AFP

Pesar da população no enterro de Pavarotti faz contraste gritante com a insensibilidade da mídia




Muitas vezes os jornalistas têm que ser malvados por necessidade (profissional). Mas o que aconteceu na Itália logo depois da morte de Luciano Pavarotti demonstra que a malvadeza às vezes é completamente desnecessária.

Quem viu as imagens na tv e na imprensa sabe que o luto por Pavarotti na Itália (mas também em outros países) foi sincero e popular. Quem leu os jornais italianos, que deram ampla cobertura dos funerais e da vida do grande tenor, descobriu uma infinidade de farpas que só serviram para alfinetar uma família em luto. O principal diário italiano, o Corriere della Sera, publicou na primeira página um editorial maldoso de seu crítico musical, Paolo Isotta, que definiu Pavarotti como um cara que não sabia ler música e não tinha ritmo. "A ópera lírica não é o canto de um muezim" - proclamou Isotta, criticando o amor pelos dós de peito do falecido. O grande concorrente do Corriere, o Repubblica de Roma, comentava que, nos últimos anos, Pavarotti não desdenhava umas doses de Viagra (e daí?). Outro artigo - aqui os necrológios que comentam a vida do defunto se chamam "crocodilos", frisando a hipocrisia das lágrimas de jornalista - compara Pavarotti com o Brutus e o Dudu, os amigos do Popeye.

Para não falar das fofocas: contando o enterro e a missa na catedral de Módena, nenhum jornal deixou de descrever a frieza entre a primeira mulher e a viúva do tenor. E como as filhas ignoraram o tempo todo a madrasta. E quanto era verde-bandeira o casaco de seda de Nicoletta (a viúva). Todos anunciaram que vai ter briga pelo testamento - que ainda não foi lido pelos herdeiros. Todos dividiram como quiseram os 200 milhões de euros que - mais ou menos - devem constituir o patrimônio do cantor. Não faltaram comentários escandalizados com os funerais solenes presididos pelo arcebispo de Módena - afinal, Pavarotti era divorciado, e portanto vivia no pecado.

O contraste entre o luto unânime, não só dos grandes personagens da política e do show-business, mas também dos cem mil zé-ninguéns que lotaram a praça para dar adeus a uma voz que foi importante em sua vida, e a falta de sensibilidade da mídia foi gritante.

Ninguém atendeu, nem por um dia, ao último pedido de Pavarotti: "quero ser lembrado como cantor de ópera". Sua vida - um conto de fadas moderno, em que o filho do padeiro se afirma como a mais poderosa voz do século, duetando com quase todos os bigs da música popular mundial -, sua carreira, seus discos, os eventos que organizou e promoveu, sua atividade como embaixador da ONU, tudo isso não era notícia: a mídia preferiu investigar sobre as últimas brigas do casal, sobre as birras da primeira mulher, sobre os maridos e namorados das filhas.

Enquanto escrevo, estou ouvindo o "Nessun dorma" de Verdi cantado pelo "big Luciano". Pego todos os recortes de artigos que guardei sobre o assunto para guardá-los no lugar que merecem. A lata de lixo.


Vera Gonçalves de Araújo jornalista, nasceu no Rio, vive em Roma e trabalha para jornais brasileiros e italianos.

Fale com Vera G. de Araújo: veragdearaujo@terra.com.br

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