sábado, 15 de setembro de 2007

Depois de Callas, uma nova história da ópera

Soprano americana, morta há exatamente 30 anos, levou a arte da interpretação a novo patamar, ajudou a redescobrir repertórios e ainda hoje é referência absoluta

Lauro Machado Coelho

O Estado de São Paulo (para assinantes)

O timbre, muito expressivo, não era exatamente bonito, no sentido convencional. A voz, muito extensa, tinha problemas de passagem e irregularidade de colorido; e, com o tempo, desenvolveu um insistente vibrato. E, no entanto, para a sua legião de admiradores, ela era conhecida como La Divina. Pudera! Que outra cantora, senão Maria Cecília Kalogeropoulos - cuja morte ocorreu há 30 anos, em 16 de setembro de 1977 - podia interpretar de Lucia di Lammermoor e Amina, em La Sonnambula, à Tosca e Lady Macbeth, a todas elas marcando com o ferro em brasa de sua inigualável personalidade?

Na introdução à sua biografia de Callas, o jornalista e crítico John Ardoin conta um episódio com o qual me identifico, pois coisa muito parecida me aconteceu, no processo de descoberta da arte dessa cantora singular. Ao comprar a Norma de 1952, em que Callas canta ao lado de Ebbe Stignani, desagradou-lhe tanto a irregularidade da voz, que Ardoin devolveu os discos à loja. Nos dias que se seguiram, porém, ele foi assaltado pela incômoda necessidade de ouvir de novo aquele registro. Passou pelo constrangimento de voltar à loja e comprar o álbum de novo. E descobriu o óbvio: a interpretação daquela americana de origem grega tinha uma intensidade quase suicida, que lhe reservou um nicho todo especial na história do canto lírico no século 20. E que faz com que alguns de seus maiores papéis - Norma, Tosca, Medéia - tenham ficado de tal maneira impregnados pelo seu estilo de interpretação, que ela passa a ser o padrão de referência a partir do qual outras cantoras serão avaliadas.

Passados 30 anos da morte dessa soprano ligeiro-lírico-dramática, nascida em Nova York em 2 de dezembro de 1923, podemos finalmente deixar para trás tudo o que de episódico e pitoresco cercou a sua carreira, que se estendeu de 1941 a 1965. A fama do temperamento mercurial de prima-dona, as lendas de sua rivalidade com Renata Tebaldi, as histórias referentes à dieta cruel que lhe deu uma silhueta de estrela de cinema, e o seu envolvimento apaixonado com o armador Aristóteles Onassis - são tos elementos acessórios de uma biografia cinematográfica, que não nos devem distrair do essencial de seu legado.

Como atriz e como cantora - usando de maneira surpreendente as próprias imperfeições de seu instrumento -, Maria Callas elevou a um patamar muito alto a arte da interpretação operística. São infelizmente muito reduzidos os documentos visuais que ela deixou. Mas quem a vê, com Tito Gobbi, no segundo ato da Tosca, filmado em um concerto de Paris, entende por que ela mesmerizava a platéia com sua presença no palco.

À Callas devemos a redescoberta de diversos grandes títulos do repertório de belcanto, de Bellini, Donizetti, Rossini e Cherubini, e parte apreciável do processo de resgate das técnicas de canto oitocentistas, com uma pureza estilística de que filtrou os excessos deixados pelo verismo. Com todos os problemas que a sua voz apresentava, ela era capaz de sugerir tanto a fria determinação de Lady Macbeth, ou a obsessão vingativa de Medéia, quanto a vulnerabilidade de Lucia ou de Violetta Valéry.

Se Maria Callas não tivesse sido uma fabulosa cantora de ópera, poderia ter sido uma excepcional atriz de teatro ou de cinema - como o demonstra a Medea de Pasolini, filmada com a incandescência de uma ópera falada. Dessa grande artista desaparecida 30 anos atrás, o que se pode dizer é o óbvio: que ela iluminou cada personagem que fez com a luz interior de seu gênio.

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