sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

O pequeno estado americano de New Jersey dá adeus à pena de morte.








DORRIT HARAZIM

Foi numa noite de novembro de 1972 que o presidente da França, Georges Pompidou, recebeu a carta manuscrita de um preso. Claude Buffet, condenado à morte por ter degolado uma enfermeira e um agente penitenciário, lhe fazia um apelo. “Peço-lhe, senhor presidente, que, quando a lâmina da guilhotina descer sobre a minha cabeça, o caminho seja aberto para a abolição definitiva da pena de morte em nosso país. O senhor deve isso à França. [Fui condenado] no mesmo dia – 29 de junho de 1972 – em que a pena de morte foi abolida na América.” Pompidou, que fora educado em um ambiente familiar que venerava Victor Hugo, Jean Jaurès e Clemenceau, todos eles abolicionistas convictos, não se comoveu. Não comutou a pena de Buffet e tampouco co-gitou imitar a América. A guilhotina só veio a ser abolida na França em 1981.

Enquanto isso, os Estados Unidos faziam o caminho inverso. Em 1976, a Suprema Corte permitiu a retomada das execuções, banidas quatro anos antes. Desde então, 1 099 condenados morreram na cadeira elétrica, na câmara de gás, por enforcamento ou por meio de injeção letal. Ou ainda por fuzilamento, como ocorreu com Gary Gilmore, o assassino de Salt Lake City retratado por Norman Mailer no livro A Canção do Carrasco. Ele foi executado sentado numa cadeira, com um capuz sobre a cabeça e um alvo no coração. Atrás de uma cortina com pequenos orifícios para a mira dos fuzis, cinco agentes penitenciários fizeram os disparos.

Choque de absolutos e teorema moral, a pena de morte continua sendo um dos grandes divisores de opinião da humanidade, junto com a questão do aborto. Partidários e adversários empilham dados e estatísticas para blindar seus argumentos, mas freqüentemente apenas embaralham os mesmos dados para chegar a interpretações opostas. De concreto, só o lento curso da história rumo à abolição. Há 64 países que ainda praticam a pena de morte contra 133 que a enterraram. Seis deles concentraram, em 2006, 91% das execuções ocorridas no mundo – China, Paquistão, Irã, Iraque, Sudão e Estados Unidos.

Outras coisas mudam menos. Cinco séculos atrás, a Europa enforcava a gentalha e reservava aos nobres a decapitação, considerada o método de matar mais aristocrático, sobretudo quando executado com uma espada. Nos Estados Unidos de hoje, o método se democratizou – injeção letal para todos –, mas a base de executados continua desigual. Segundo o mais recente levantamento feito pelo Departamento de Justiça americano, em mais da metade dos casos de sentenças de morte os condenados são negros, e 90% das execuções ocorrem em prisões sulistas.

Foi em meio a esse infindável debate universal que o pequeno estado de New Jersey, vizinho do Canadá, decidiu estrear 2008 como o primeiro do país, após mais de três décadas, a banir a pena de morte. A abolição foi aprovada pela assembléia legislativa por 44 votos a 36, passou pelo senado estadual por 21 a 16, e recebeu a sanção do governador Jon Corzine* na manhã de 17 de dezembro. Para os legisladores, foi um voto de pouco risco político, pois 51% da população já haviam manifestado sua preferência pela prisão perpétua sem sursis. Ademais, o voto estava ancorado num estudo de 100 páginas, feito por uma comissão multidisciplinar de treze membros, que chegou a duas conclusões básicas. Primeiro, que, financeiramente, a manutenção do aparato da pena de morte em New Jersey tem saído cara demais para os cofres do estado – 250 milhões de dólares, “sem grandes resultados”. E, em segundo lugar, porque a pena capital não serviu como fator de dissuasão de assassinos. O determinante, para o criminoso de sangue frio, seria a convicção de não ser apanhado, e não a natureza do castigo que o aguarda.

Para Jessé K. Timmendequas, que molestou e assassinou uma menina de 7 anos, em 1994, o fim da pena de morte foi um presentão de Natal. Ele era um dos oito condenados à pena máxima em New Jersey, e há dez anos residia no corredor da morte da penitenciária do estado. O mesmo vale para os 3 350 presos, espalhados pelos 36 estados americanos onde ainda vigora a pena, que aguardam o dia de serem chamados para receber na veia o coquetel da morte.

É justamente em torno desse coquetel de três componentes que se dá, hoje, o debate da pena capital nos Estados Unidos. Ele é fruto da impossível tentativa de conciliar o irreconciliável. “Quando seres humanos se dedicam a matar-se uns aos outros, não adianta procurar um método perfeito, limpo, livre de problemas”, adverte a professora de Direito da Universidade de Califórnia, em Berkeley, Elisabeth Semel. Neste mês de janeiro, a pedido dos defensores de um assassino californiano cuja execução está sustada, a Suprema Corte decidirá se a morte por injeção letal viola a 8ª emenda constitucional, que proíbe toda “punição cruel e pouco usual”.

Pelo protocolo médico adotado em 1977, o coquetel é composto por um sedativo potente (sódio tiopental), um agente paralisante da musculatura (brometo de pancurônio, 50cc), que causa a falência do pulmão, e uma dose de cloreto de potássio (50cc), que induz à parada cardíaca. Mas desde que a revista especializada inglesa Lancet publicou um estudo apontando o sofrimento que o procedimento causa ao condenado, reina uma espécie de moratória não-oficial nos estados americanos, à espera da decisão do judiciário federal.

Qualquer que seja o voto, contudo, a roda da história continua a se mover em direção à abolição. Correr atrás da história é fácil. Valente mesmo, com a cabeça política a prêmio, foi François Mitterrand, candidato socialista a presidente da França em 1981. Naquele ano, 63% dos eleitores haviam se declarado favoráveis à manutenção da pena de morte – aquela que Georges Pompidou se recusara a alterar. Mitterrand encarou. “Não preciso ler as pesquisas para ver que a maioria do país é a favor. Pois bem, eu, candidato à presidência, sou contra. E digo o que penso, digo onde se situam minhas convicções e minha busca de civilização.” Foi eleito. A pena de morte foi abolida quatro meses depois da sua posse.

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