sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Crise encontra o país solvente



O Brasil solvente enfrenta a primeira crise advinda de turbulência nos mercados financeiros internacionais. O caixa registra US$ 160 bilhões em reservas cambiais no Banco Central e R$ 281 bilhões de recursos no Tesouro Nacional, que podem ser utilizados para alguma eventualidade, como ficar até quatro meses sem ir ao mercado fazer a rolagem da dívida mobiliária interna. Desse volume de recursos no Tesouro, cerca de metade pode ser usado diretamente para resgatar dívida, caso isso seja necessário.

Apesar de não se conhecer a extensão e a profundidade dos problemas que o mercado externo enfrenta, o governo se diz razoavelmente tranqüilo, porque as contas indicam solvência interna e externa. Essa é uma experiência nova.

A decisão de acumular um colchão de liquidez no Tesouro Nacional só começou a ser adotada após a crise asiática, em 1997. Numa situação extrema, o governo pode mobilizar a totalidade dos R$ 281 bilhões existentes, embora nessa gaveta estejam depositados também alguns recursos "vinculados", ou seja, dinheiro que não foi gasto até agora, mas que tem destinação específica. Já a acumulação de reservas cambiais é bem mais recente e esteve sob intensa polêmica por causa dos custos fiscais que essa política impõe ao país. Agora é o momento exato para se olhar os benefícios de o país ter reservas cambiais equivalentes a quase 17 meses de importação.

Segundo fontes da área econômica que acompanham o governo Lula desde 2003, a construção dessa rede de segurança representada pelas reservas cambiais foi uma questão discutida e deliberada pelo governo ainda em 2003. Ali, relatam essas fontes, a equipe econômica, liderada pelo então ministro da Fazenda Antonio Palocci, teria decidido aumentar os juros não só com o intuito de abater a inflação que era crescente, mas também para deslocar 15% da produção industrial do país para o mercado externo. Isso reforçaria as exportações, o saldo comercial e as transações em conta corrente do balanço de pagamentos. Como, no mundo, a demanda era crescente, o momento era oportuno para realizar essa tarefa. O saldo em transações correntes que, em 2002, havia sido deficitário em 1,51% do PIB, tornou-se hoje superavitário em pouco mais de 1% do PIB.


É hora de testar os benefícios das reservas


É preciso observar, porém, que em 2002, sem crédito externo e em meio a uma crise de grandes proporções, o governo também já havia feito um corte substancial no déficit em conta corrente, equivalente a 2,7 pontos percentuais do PIB. De qualquer forma, porém, o ajuste de 2003 foi uma decisão difícil, levada ao presidente da República pela equipe econômica, mediante o compromisso de que em 2004 tudo seria mais fácil.

Em janeiro de 2004 o presidente do BC, Henrique Meirelles, anunciou um programa de acumulação de reservas cambiais e de redução do passivo externo e interno atrelado à variação cambial. As reservas, que encerram 2002 em US$ 37,82 bilhões, começam a crescer ainda em 2003 e chegam ao fim de 2004 em US$ 52 bilhões. Mas ganham impulso mesmo à partir de abril de 2006, quando passam dos US$ 56,5 bilhões para os atuais US$ 160 bilhões, período que coincide com a chegada de Guido Mantega ao comando da Fazenda. O endividamento externo declina, caem os juros a serem pagos anualmente e a dívida pública indexada ao câmbio desaparece, passando o governo a ser credor em dólar. Está, assim, bem equacionada a chamada vulnerabilidade externa, que foi sempre por onde as crises financeiras internacionais quebraram o Brasil.

Os economistas oficiais só não contavam com um detalhe: quando a economia começa a crescer em 2004, a inflação volta a dar sinais de reanimação, e a queda dos juros, que vinha ocorrendo desde julho de 2003, é interrompida pelo Copom, que recomeça o reaperto monetário em setembro de 2004. Com os juros internos elevadíssimos frente aos juros internacionais, a acumulação de reservas cambiais significava, e ainda significa, que o governo estava arcando com o diferencial de taxas para esterilizar as reservas. Calcula-se, grosso modo, que o custo fiscal da acumulação de reservas cambiais hoje estaria na casa dos R$ 20 bilhões (considerando juros interno e externo e taxa de câmbio de ontem).

Já os benefícios de carregar elevado volume de reservas é mais difícil de se calcular na ponta do lápis, mas é inegável. A lista de vantagens começou, segundo avaliação de um alto funcionário do governo, quando a Vale do Rio Doce conseguiu, no ano passado, levantar um "funding" de US$ 18 bilhões para adquirir 75,66% do capital da mineradora canadense de níquel Inco. Destes, cerca de US$ 14 bilhões foram obtidos no mercado externo. Mesmo sendo grau de investimento, a Vale dificilmente teria mobilizado esses recursos se o país estivesse muito mal avaliado e sob risco de inadimplência. O mesmo raciocínio pode ser aplicado às emissões externas feitas em reais, pelo Tesouro, a juros de cerca de 8,6%.

Produzir superávit em conta corrente e ter uma montanha de dólares em reservas foram lições aprendidas com os países asiáticos pós-crise de 1997, conta uma autoridade do governo. Lá eles compreenderam que não era mais possível viver à mercê dos créditos financeiros internacionais e que o grande negócio era ter saldo em conta corrente e sólidas reservas internacionais. A crise de 1997, prossegue esse analista do governo, levou ao fim da crença de que os países ricos tinham que ser exportadores de capital e os pobres, importadores. Em 2003, ao assumir, Lula foi confrontado com o que seria, no Brasil, um novo modelo de desenvolvimento, que marcharia ao lado do regime de câmbio flutuante, sistema de metas para a inflação e superávit primário das contas públicas: superávit nas transações correntes, baixo endividamento e reservas robustas.

É difícil demarcar quanto dos ajustes feitos nos últimos anos, no país, foi fruto de decisão estratégica de governo e quanto foi sendo possível pelas condições favoráveis de um crescimento ininterrupto das economias no mundo. O certo é que isso tornou o país mais resistente, apesar de não imune, à crises externas.

Claudia Safatle é diretora adjunta de Redação e escreve às sextas-feiras

claudia.safatle@valor.com.br

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