Nem Kansas, nem Maracangalha
Dionísio Dias Carneiro*
para O Estado de São Paulo (para assinantes)
A grande reversão de cenário que estamos vivendo me lembrou o saudoso Carlos Díaz-Alejandro. Na crise mexicana do início dos anos 80, Alejandro sintetizou sua ironia diante da perplexidade dos analistas ao citar a explicação didática dada por Dorothy-Judy Garland ao seu cãozinho, depois do tornado que os levou para além do arco-íris, no inesquecível O Mágico de Oz: “Look, Toto, we’re not in Kansas anymore!”
Onde estamos? Reconhecer a nova geografia em meio à resistência dos governos e dos agentes econômicos em geral à inevitabilidade das mudanças que os fins de ciclo ensejam não é matéria simples. Como ocorre em tantas outras experiências humanas, a resistência começa por um estado de negação que se nutre da ilusão de que o mundo aprendeu a blindar-se contra os ventos desfavoráveis e, em caso de falha da blindagem, conta com balas na agulha. Termina pela caça aos culpados, atividade favorita dos que vêem o mundo como uma luta permanente entre os poderosos que o manipulam e as pobres vítimas da cupidez e da incúria dolosa dos que mandam.
Além disso, todo final de ciclo é terreno fértil, no qual vicejam as projeções apocalípticas. Afinal, é o momento de glória dos que passaram os últimos três anos antecipando o fim do ciclo, adiando sempre por alguns meses a chegada dos quatro cavaleiros do apocalipse econômico: a ruptura da confiança, as quebras das instituições financeiras, o colapso do sistema de crédito privado e o descontrole cambial que provoca a implosão dos fluxos externos de capital. No mundo globalizado, os canais por onde jorrava a abundância do crédito invertem a mão e passam a conduzir o pânico. Será a reversão suficiente para obliterar os ganhos de produtividade advindos da relocalização da produção industrial do mundo, que é responsável pelo aumento do consumo e do investimento em todo o mundo?
Para responder a essa pergunta é útil reconhecer, em meio aos elementos comuns a qualquer reversão cíclica, a existência de fatores históricos que não são recorrentes e que diferenciam cada ciclo (e cada fim de ciclo) do que o antecede. Por serem não repetitivos, constituem novidades (ou, no jargão dos especialistas, “inovações”) para as quais não estamos preparados com os instrumentos do dia-a-dia, baseados que são em parâmetros do passado. Os modelos financeiros de avaliação de ativos e de risco macro, integrados aos modelos macroeconômicos modernos, habilitam estrategistas de mercados e responsáveis pela política econômica a preparar-se para as crises anteriores. Tal como os estrategistas militares, os exércitos de analistas e traders fazem uso imediato dos instrumentos state of the art, mas freqüentemente caem vítimas da combinação tão freqüente de arrogância dos neófitos bem equipados, com a ingenuidade dos recém-chegados, que costumam crer na perenidade dos bons resultados. No ciclo que ora se finda, as causas reais do barateamento dos investimentos e do consumo foram exacerbadas pela alta alavancagem dos fundos financeiros, que terá espalhado a impressão de que o mundo se tornara “plano”, como os campos de Kansas. A crise corrige os exageros. Espalha vítimas e provoca retrocessos na economia real, mas não extingue os benefícios da melhor distribuição do risco. O mundo não precisa ser plano, no sentido de Thomas Friedman, para que os riscos remotos se tornem mais visíveis.
Em particular, o fim deste ciclo não significa o fim dos benefícios da globalização financeira para a alocação mais eficiente da poupança global. A correção dos exageros, refletidos nos baixos spreads que alimentaram o boom de crédito, é essencial para que a melhor distribuição do risco possa basear-se em preços realistas das alternativas mais arriscadas. O consumidor americano continua a ser um elo importante entre o aumento da produtividade chinesa, que barateia os bens industriais, e o aumento dos preços de commodities, que beneficiam os novos superavitários, como o Brasil. Mas todos sofrerão. Os canais de crédito entrarão em reforma e a reprecificação atingirá inevitavelmente o Brasil e outros emergentes, que se beneficiavam do excesso de otimismo implícito no preço de risco dos últimos 12 meses. Não, não estamos nem nunca estivemos em Kansas. Mas isso não significa que voltemos a pagar os spreads de Maracangalha, como em 2002, quando a migração do capital e a desalavancagem súbita desnudaram nossa fragilidade aos realinhamentos cambiais.
*Dionísio Dias Carneiro, economista, professor do Iapuc, é diretor do Iepe/CdG
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