sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Reportagem x factóide no novo mundo

Terra Magazine

Ricardo Kauffman
Divulgação

"Potencialmente, o próprio Lewandowski não poderia ter simulado a conversa?"



Chama a atenção que os três maiores furos jornalísticos na cobertura política brasileira das últimas semanas ocorreram na fronteira entre o espaço público e o privado. E que dois deles se relacionam à repercussão da própria cobertura jornalística no meio político.

São eles o episódio do "top-top", protagonizado pelo assessor especial da Presidência da República, Marco Aurélio Garcia; a correspondência eletrônica de dois ministros do STF flagrada por um fotógrafo de O Globo durante julgamento das denúncias do mensalão; e as declarações de um deles feitas ao celular num restaurante de Brasília, testemunhadas por uma repórter da Folha.

São três flagras da imprensa que contêm digitais da era da comunicação total. Vivemos cercados de câmeras e nos relacionamos por celulares e computadores o tempo todo, mesmo enquanto desempenhamos outras tarefas ou relaxamos. Cinegrafistas, fotógrafos e repórteres atentos trazem à luz do público manifestações que tinham como destino exclusivo os seus interlocutores.

Não pretendo aqui entrar na discussão ética sobre o uso de tais informações. Meu objetivo é refletir o quanto estas ações - isoladas de outras ferramentas de reportagem - contribuem para compreensão dos fatos que realmente mais interessam à sociedade. E se a mídia está cumprindo o seu papel de investigar e mediar a informação que chega ao público.

A reportagem da Folha provocou-me uma pulga atrás da orelha. Porque a repórter não abordou o ministro Ricardo Lewandowski após ter ouvido e anotado sua conversa ao celular? Se soubermos hoje que isso ocorreu, a informação está atrasada, já que poderia ter sido divulgada junto com a matéria, publicada dois dias depois de ocorrido o fato.

Se o tivesse feito, o jornal teria chance de publicar alguma declaração oficial do ministro. Ele poderia confirmar suas afirmações, negá-las ou simplesmente se recusar a falar a respeito. Qualquer uma das hipóteses enriqueceria a matéria. Jornalisticamente, qual motivo a Folha teria para não ouvir o ministro depois de ter testemunhado a conversa?

Teria faltado coragem de admitir cara-a-cara com o ministro que sua conversa foi ouvida pela reportagem e pararia na manchete do jornal? Qual o motivo para esta aparente timidez (há margem para o leitor desconfiar disto) se o procedimento foi legítimo?

Tal escolha e episódios fazem-me vir à cabeça a imagem de um modelo de repórter que a tudo vê e ouve, mas não interpela o personagem de sua história. Contenta-se apenas com aquilo que flagra. Acredito que este jornalismo é muito arriscado.

Astúcia existe em todos os lados da notícia. Artimanhas podem se revelar ingênuas e traiçoeiras quando desprotegidas da checagem de todas as hipóteses. Potencialmente, o próprio Lewandowski não poderia ter simulado a conversa?

Afinal, o suposto diálogo flagrado não é de todo negativo para a sua imagem. Se o repórter se contenta apenas com o que escuta e vê, não poderia virar um ótimo negócio conversar perto de repórter para plantar notícia?

O resultado é que hoje a repercussão (a matéria sobre as declarações de Lewandowski) da repercussão (a matéria sobre a correspondência eletrônica do STF) da cobertura da mídia sobre o julgamento do STF ocupa a berlinda. E o mérito da questão - se e quais crimes foram cometidos no chamado esquema mensalão - fica a reboque. O que a imprensa diz sobre o fato toma o lugar protagonista do fato.

O cidadão delega à mídia a função de hierarquizar, gerir e intermediar a informação que vem à público. No turbilhão de novas formas de notícias com que agora convivemos, este desafio é cada vez maior e mais difícil.

Um estudante americano de 24 anos mostra um caminho inspirador. Segundo matéria da Folha desta semana, Virgil Griffith criou um site que revela a procedência das modificações dos verbetes da Wikipedia. Governos retiram informações desfavoráveis de suas citações; empresas plantam notas contrárias à concorrência. O WikiScanner (wikiscanner.virgil.gr) é uma prova da importância do contexto das informações.

Há esperança na rapaziada. A sociedade do futuro voltará a optar pela reportagem em detrimento do factóide.


Ricardo Kauffman é jornalista e roteirista.

Fale com Ricardo Kauffman: rikauffman@terra.com.br

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