quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Lula II: a economia no piloto automático

Jornal Valor

o mesmo tempo em que revelam um líder mais sereno e menos rancoroso, mais equilibrado e cuidadoso com o que diz, embora exibindo sempre um inconfessável e desproporcional sentimento de grandeza, as últimas declarações públicas do presidente Lula mostram que não há, neste segundo mandato de seu governo, um plano de vôo para a economia brasileira. Na longa entrevista que deu ao "O Estado de S. Paulo", Lula exaltou o que fez no primeiro mandato, disse que "ainda tem muita coisa para ser feita", mas não fez uma menção sequer ao que pretende construir nos próximos três anos - lembre-se: um ano do novo mandato já se foi.

A palavra "reforma" só apareceu uma vez em toda a entrevista e, mesmo assim, por insistência dos entrevistadores, que queriam conhecer a opinião de Lula sobre reforma política. Mesmo quanto a esse tema, o presidente tratou de esquivar-se - a reforma, disse ele, é "necessária", mas caberá ao Congresso e aos partidos políticos tomarem a liderança do assunto.


Sobre economia, nada, a não ser louvor. É como se todos os problemas do país tivessem sido resolvidos nos últimos quatro anos. É como se a carga tributária não fosse a mais alta do mundo em desenvolvimento e não estivesse, efetivamente, asfixiando o desenvolvimento do setor privado e o orçamento das famílias. É como se o gasto do governo não tivesse chegado a montantes intoleráveis, reduzindo o espaço da iniciativa privada na economia e mantendo, em patamares elevadíssimos, o seu custo de financiamento.


A impressão que o presidente passa é que, em matéria de política econômica, ele vê o primeiro mandato como um purgatório, uma espécie de mal necessário, mas do qual quer distância. Ele lembrou, com sofreguidão, do dia, em 2004, em que foi obrigado a não reajustar o salário mínimo (na verdade, reajustou, mas dando um aumento real de apenas 1,2%). "Foi duro, um sofrimento", declarou.


Melhor teria sido justificar seus atos. O sacrifício, como se sabe, foi necessário porque, naquele momento, a situação das contas públicas pós-crise de 2001/2002 era calamitosa. Na verdade, não havia outro caminho e a opção pela decisão mais difícil, mesmo acertada, era inarredável. De qualquer forma, Lula não tem, nessa seara, do que envergonhar-se. Foi por ter tomado decisões difíceis nos três primeiros anos, num ambiente de prosperidade internacional que ajudou sobremaneira o Brasil, que seu governo assegurou a estabilidade alcançada e que, em última instância, assegurou a reeleição do presidente.


Lula disse, na entrevista, que " se a gente perder a seriedade e achar que já pode fazer a farra do boi, poderemos quebrar a cara". A farra do boi, entendida como a festa licenciosa dos gastos públicos, começou há tempos. As despesas primárias do governo, excluídos, portanto, os gastos com juros da dívida, não param de crescer. Entre 2003 e 2006, expandiram mais de dois pontos percentuais do PIB. A expectativa é que, em 2007, atinjam a impressionante marca dos 18,05% do PIB, 2,63 pontos percentuais superiores ao primeiro ano de Lula no poder (um incremento de cerca de R$ 66 bilhões).



Equipe atual rejeita "Carta ao Povo Brasileiro"


Em entrevista ao Valor, há dois meses, o presidente disse que não faria mais ajustes nas contas do governo, impondo sacrifícios aos funcionários públicos. Ora, se o sacrifício não pode ser imposto a pouco mais de 1,5 milhão de pessoas - no nível federal -, ele certamente o será ao restante da população. A farra do boi está justamente na concessão de reajustes salariais generalizados e generosos aos funcionários públicos, em meio a um ajuste fiscal que ainda não foi concluído, como reconheceu o próprio Lula - o déficit nominal do setor público consolidado (União, Estados e municípios) deve fechar o ano em torno de 2,3% do PIB, segundo previsão do Banco Central.


A farra dos gastos é igualmente danosa porque os investimentos públicos em infra-estrutura permanecem constituindo a menor fatia do gasto público - no ano passado, eles caíram ao menor volume da história (0,5% do PIB) e, neste ano, mesmo com a panacéia em que se transformou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), não deverá ser muito diferente. A situação fiscal só não é de descalabro porque a competência da Receita Federal em arrecadar impostos é proporcional ao apetite do governo em criar novos gastos. Nessas circunstâncias, fazer superávit primário superior ao que vinha sendo feito pelo governo passado é fácil. A conta é paga pela sociedade.


Há uma clara incoerência, no discurso presidencial, entre a exaltação do que foi feito no primeiro mandato e o que veio depois. Lula glorifica a "Carta ao Povo Brasileiro", atribuindo aos compromissos assumidos nela a vitória na eleição de 2002. Mas, sua atual equipe econômica (com exceção do Banco Central, autônomo e, por essa razão, solitário fiador da estabilidade econômica), inconformada com os termos daquele documento, trabalha por sua desconstrução. Rejeita a autonomia do BC na fixação dos juros, nega o modelo de metas de inflação (na Fazenda, considera-se equivocada a teoria das expectativas racionais, inspiradora do regime), defende a desvalorização do real (e, portanto, a implosão do sistema de câmbio flutuante) e não faz nada para conter a escalada dos gastos.


O presidente Lula demonstrou ter consciência do frágil equilíbrio representado pelas duas visões distintas que predominam dentro de seu governo. Na entrevista ao "Estadão", concordou, sem pestanejar, que Henrique Meirelles foi seu "grande achado" na administração da economia, "nosso grande acerto", segundo suas próprias palavras. O presidente reforça a impressão, no entanto, de que, daqui em diante, não remará contra a maré. Entenda-se a maré como a opinião de sua base política tradicional, que nunca engoliu o que ele fez na economia.


A perspectiva, a três anos do fim do segundo mandato, é desanimadora: o Brasil do Lula II funcionará no piloto automático, sem ousar, sem se preparar para dar um novo salto, refém das idiossincrasias de uma minoria que aprisiona o presidente ao passado.

Cristiano Romero é repórter especial e escreve às quartas-feiras.

cristiano.romero@valor.com.br

Nenhum comentário: