sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Aborto: último recurso

LENA LAVINAS


FOLHA DE SÃO PAULO


Toda contracepção é falível. É o que justifica assegurar o direito ao aborto a todas as mulheres que optarem por se valer desse último recurso


PARADOXOS existem cuja compreensão nem sempre leva à sua superação. Exemplo cabal é a permanência da prática do aborto em patamares relativamente estáveis em muitas democracias ocidentais, lá onde ele foi inicialmente descriminalizado, antes de ser liberalizado e regulamentado. Não que sua liberalização não tenha sido precedida de medidas garantindo o livre acesso aos mais variados métodos contraceptivos, de forma gratuita ou mediante reembolso como direito do sistema de seguridade social.
Esse "script" seguiu a França, quando da aprovação da Lei Neuwirth, em 1967, que antecedeu em oito anos a promulgação, em 1975, da Lei Veil, esta autorizando a interrupção da gravidez sob certas condições. Desde então -e contrariamente a todas as expectativas-, o número de abortos por 1.000 mulheres praticamente não variou ao longo de 30 anos: 14 em 2004, número praticamente idêntico ao de 1975.
Vale registrar que essa taxa é muito semelhante à inglesa e inferior à sueca, esta de 15%, a mais elevada da Europa-15 (as menores são da Bélgica e da Espanha, próximas de 6 abortos por 1.000 mulheres). Em 2004, foram realizados aproximadamente 210 mil abortos na França, 70% deles no setor público.
Aumenta na França a proporção de abortos seguros, isto é, medicalizados, mediante uso de remédios em lugar de intervenção. Esse percentual já alcança 42% de todos os procedimentos de interrupção voluntária da gravidez (IVG), contra 14% em 1990.
Essa progressão se deve ao fato de a França, tal como Inglaterra e Suécia, ter introduzido, desde o início dos anos 90, a opção medicalizada, que mais recentemente vem se generalizando pelos demais países europeus.
A interrupção voluntária da gravidez implica permanência de algumas horas em um hospital, mas também já pode ser feita, no período regulamentar de 12 semanas, em qualquer consultório médico, seja por um clínico geral, seja por um ginecologista.
Essa é uma das mudanças introduzidas na lei francesa quando de sua revisão em julho de 2001, acompanhando o progresso técnico-científico e os valores éticos.
Interessante observar, no entanto, que, nesse mesmo período de 30 anos, o percentual de francesas em idade de procriar (14 a 49 anos) que aderiram a algum método de controle não natural (pílula, diafragma, DIU, preservativo) passou de pouco menos de 50% para 75%. Ou seja, a forte expansão da demanda por contraceptivos -com oferta massiva e de qualidade- não restringiu a demanda por aborto.
Tampouco impediu um recrudescimento da taxa de natalidade: a França registra, ao lado da Irlanda -país em que a interrupção voluntária da gravidez é proibida-, a mais alta taxa de fecundidade no âmbito da União Européia: 1,9.
Esse resultado, aparentemente paradoxal, é fruto de uma bem-sucedida política natalista ativa do Estado francês, adotada há poucos anos com o intuito de evitar problemas futuros derivados do envelhecimento da população. Política essa feita, diga-se de passagem, sem sacrificar a participação constante e elevada das mulheres no mercado de trabalho.
O que caiu significativamente na França foi o número de gravidezes não programadas. Destas, hoje, dois terços são interrompidos e um terço chega à concepção. Em 1975, essa proporção era, respectivamente, de 42% e 48%.
Planejar a maternidade é, sem dúvida, a melhor maneira de promover bem-estar e felicidade para todos.
Não bastasse isso, graças à legalização do aborto e, notadamente, à progressão do aborto medicalizado e seguro, houve uma redução espetacular da mortalidade materna. Segundo estatísticas oficiais, há menos de uma morte/ano, na França, em conseqüência da prática do aborto (0,3 morte por 100 mil abortos).
No Brasil, o aborto é a quarta causa de morte materna, contribuindo para as altas taxas de mortalidade feminina (76 mortes por 100 mil), com elevados custos humanos e financeiros.
O ministro da Saúde tem razão: aborto é questão de saúde pública!
O risco da procriação não planejada existe e, embora possa ser significativamente reduzido com o desenvolvimento de novas técnicas e métodos modernos mais eficazes, jamais será completamente eliminado.
Quem julga o recurso ao aborto como uma escolha irresponsável de contracepção insiste em ignorar que toda contracepção -à exceção da esterilização- é falível. E é isso que justifica assegurar o direito ao aborto a todas as mulheres que optarem por lançar mão desse último recurso.
Uma escolha que também nós, brasileiras, queremos ter.


LENA LAVINAS , 54, doutora em economia, é professora associada do Instituto de Economia da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

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