terça-feira, 21 de agosto de 2007

"Os criadores de fofocas, podiam obter bons empregos. Subir na hierarquia social. Colocar-se em posição de relevo"

O mal de todos
Terça, 21 de agosto de 2007, 09h22
Claudio Lembo
Reprodução

O Concilio de Trento: Quando a fofoca ganhou força no Ocidente



Existe um hábito tão entranhado em nosso cotidiano, que sequer é percebido nas relações diárias. Este hábito alcança graus assustadores nas esferas políticas.

Parece um complexo psicológico coletivo. Ou ainda mais. Uma deformação de caráter que atinge a todos. É grave. Possui raízes históricas profundas. No Ocidente, surgiu nos escaninhos da Idade Média e tomou corpo com o Concílio de Trento, lá no longínquo ano de 1563.

Esta doença social abate-se sobre todos, sem distinção. Acentua-se em determinados segmentos. Quanto mais diferenciada a pessoa, maior a incidência. A endemia é contagiosa e devastadora.

Importante é expor, de pronto, esta enfermidade social. Ao torná-la pública, indicando suas causas, certamente, pode-se minorar os efeitos da praga nascida tão distante no tempo e tão presente no nosso dia-a-dia.

Trata-se do disse-me-disse, a bisbilhotice. Ou mais claramente, o mexerico. Enfim, a fofoca, hábito nacional tão popular quanto o próprio futebol. Duas pessoas se encontram. De pronto, uma terceira sofre maledicência.

A endemia é violenta. Por vezes, transforma-se em epidemia. Agride imagens plasmadas em muitos anos. Em segundos, destrói reputações. Fere a honra e os traços marcantes de diferentes personagens.

Encontra-se presente em todas as partes. É universal. Do balcão do mais singelo dos bares à mesa sofisticada do mais exclusivo restaurante sempre surge a fofoca. Ela alimenta as refeições.

Não se encontra ausente do gabinete do qualificado executivo e muito menos do espaço da mais modesta micro empresa. À foca, por vezes, dá-se o nome de informação privilegiada. Paga-se até para conhecê-la.

A maledicência possui origem remota. Nos costumes brasileiros, ingressou por intermédio dos colonizadores ibéricos. Vale o diagnóstico para a América espanhola, portanto.

Ao chegarem, os ibéricos traziam em suas caravelas, além da pólvora, os princípios inquisitoriais. Delatar, captar verdades ou inverdades, transmiti-las aos agentes da Inquisição constituía-se em procedimento exemplar.

Os autores das delações, os criadores de fofocas, podiam obter bons empregos. Subir na hierarquia social. Colocar-se em posição de relevo. Participar do butim. Levar vantagem.

Tão próprios da cultura latino-americana, estes traços se vinculam diretamente à Inquisição, este tribunal religioso que deformou as consciências. Alterou a convivência entre pessoas, gerando dor e profundas angústias.

Na América portuguesa, jamais se instalaram Tribunais do Santo Ofício da Inquisição, como aconteceu na América espanhola. Mas, as conseqüências das atividades dos agentes inquisitorias repercutiram de maneira comum.

Os visitadores do Santo Ofício percorreram o espaço português da América meridional. Iam em busca de infiéis e de heréticos. De passagem, arrecadavam patrimônios. Destruíam famílias. Agrediam culturas.

Como herança, os visitadores deixaram a prática da delação. Com o fim da Inquisição, no primeiro quartel do século XIX, restou o habito da maledicência. De captar meias verdades e transformá-las em fatos notórios.

Em toda a América ibérica, preservou-se esta forma anômala de expor fatos e acontecimentos. Sempre recolhidos a partir dos desvãos das casas. Sempre mediante o uso de insídias.

Fala-se mal de tudo e de todos. Proclama-se a imperfeição. Um niilismo insano assume todas as situações. Coroe todas as conquistas. Nada vale. Tudo torna-se frágil. Descartável.

Esta forma de agir gera uma depressão coletiva. Uma exaustão sem paralelo. Leia-se as últimas entrevistas reproduzidas pelos meios de comunicação. Retratam enfado ilimitado. Uma descrença generalizada.

Importante romper este ciclo maléfico. As causas encontram-se em nosso passado comum. A Inquisição criou medos e privilégios. Vitimou pessoas e costumes. Gerou esta vontade indomável de praticar maledicência. Levou ao complexo de culpa.

A prioridade zero da América ibérica vai além de romper os obstáculos econômicos. Precisa vencer a prática autofágica do falatório. Ai vai dar certo. O difícil é cortar a língua.

TERRA MAGAZINE

Cláudio Lembo é advogado e professor universitário. Foi vice-governador do Estado de São Paulo de 2003 a março de 2006, quando assumiu como governador.

Fale com Cláudio Lembo: claudio.lembo@terra.com.br

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