quarta-feira, 12 de setembro de 2007

"Camaradas, o povo também se equivoca"

Marcelo Coelho sai em defesa do livro "A cabeça do brasileiro", do sociólogo Alberto Carlos Almeida. Marcelo Coelho tem razão quando se insurge contra uma visão idílica do povo e defende a pesquisa feita sobre as opiniões do povo brasileiro.

Porem, não me parece conveniente ignorar que a polêmica sobre esse livro iniciou-se a partir de um artigo da revista Veja que sobre o pretexto de apresentar o livro, contrabandeou uma visão muito sui generis sobre o povo brasileiro. Segundo a Veja, "O que se tem ali é uma radiografia de nitidez impressionante, que afirma principalmente como o papel da elite na construção de um Brasil moderno é crucial."

A "radiografia" é do autor do livro, a "afirmação" é da Veja.

A revista procura assim escamotear o papel da elite na construção deste Brasil real e seu reflexo na configuração das "opiniões do povo brasileiro". Como se o nível de escolaridade e educação de uma parte dessa elite não guardasse nenhuma relação com sua extraordinária capacidade a preservar seus privilégios (de riqueza, educação, acessos culturais, alimentação, etc.).

O que a Veja escamoteia é como foi "crucial" sim, na construção do Brasil atrasado que o governo Lula se esforça em mudar, o papel ocupado pelos privilégios da elite, aqui mancomunados parte dos ricos, setores da igreja, parte dos intelectuais, uma certa mídia que tão bem encarna a Veja e o sabre quando braço secular dos privilégios e do arbítrio.

Outro aspecto é que a hipocrisia dificilmente aparece nas pesquisas. Alguém duvida sobre qual seria a resposta do juiz Lalao a pergunta do livro:
"Se alguém é eleito para um cargo público, deve usá-lo em benefício próprio, como se fosse sua propriedade?"

Em outro registro, por exemplo, a "elite" não para de apresentar a corrupção como típica dos nossos países, a diferencia dos do primeiro mundo mais honestos neste quesito. Segundo pesquisa publicada neste blog (ver
What a Wonderful World ) é o inverso que é verdadeiro, mesmo que nossa percepção seja diferente.

A representação que os indivíduos se fazem do mundo, não nos diz muito sobre o que eles efetivamente são e a dissociação entre o "faz o que eu digo e não o que eu faço" me parece constituir um traço de nossa sociedade moderna. Isto não significa aceitar um reducionismo infantil do tipo: o povo é sábio e a elite burra, mas o contrário tampouco é verdadeiro.

Quando o articulista da Veja disse: " A corrupção, essa praga tão destruidora quanto a saúva o era nos tempos do ciclo do café, tem o beneplácito da maioria dos iletrados. Isso ficou claro quando se colocou a seguinte pergunta: "Como considerar a atitude do funcionário público que ajuda uma empresa a ganhar um contrato no governo e depois recebe dela um presente de Natal?". Para 80% dos que não sabem ler ou escrever, isso é apenas um "favor" ou um "jeitinho". Para 72% dos que concluíram a universidade, é corrupção e ponto final."

O jornalista parece querer ignorar que a resposta provavelmente seria a mesma se a pergunta fosse: Como considerar uma empresa e seus donos que subornam um funcionário público para ganhar um contrato do governo? Se colheremos as respostas na FIESP não seriam 72%, mas provavelmente 100% os que responderiam corrupção. E daí?

Poderíamos concluir tal vez que os mais pobres são mais cínicos ou menos hipócritas e que perante o espetaculo das elites, um presente de natal é efetivamente... um favor.


Por último, a relação entre o "que pensam" e "como votam" os brasileiros, em sua relação com a educação. Como se sabe pelas estatísticas, está ultima tem progredido no Brasil. Mais escolaridade, diminuição do analfabetismo etc. Isto não se traduz automaticamente, nem necessariamente em consciência política.

A educação abre horizontes e constitui um elemento chave do progresso social, já a consciência política exige uma compreensão, não necessariamente intelectual, sobre os interesses sociais em jogo e as aspirações dos homens e mulheres que vivem neste vasto pais. A educação é um elemento que contribui a facilitar essa consciência, outro elemento é a experiência e a própria luta por essas aspirações e também a organização política e o confronto democrático de idéias e programas. Nesta questão, ela sim crucial para construir um Brasil moderno, os 'analfabetos" se recrutam em todas as classes sociais, tal vez mais naquela que a Veja chama da elite do Cansei e paradoxalmente é um torneiro mecânico que esta dando aula.

Dito isto, concordo com Marcelo Coelho, o termômetro não é o responsável da doença e a pesquisa e seus resultados interpelam todo nosso corpo social. Uma certa elite deveria tomar vergonha na cara ao ver o resultado.

Luis Favre

Marcelo Coelho para Folha de São Paulo


"Esse sociólogo quer demonstrar que as elites são mais éticas do que a classe baixa!"

UMA ONDA de inconformidade e ranger de dentes parece ser o principal efeito do livro "A Cabeça do Brasileiro", do sociólogo Alberto Carlos Almeida, recentemente publicado pela editora Record.
O autor, que é professor na Universidade Federal Fluminense e diretor de um instituto de pesquisas, resolveu medir as opiniões da população brasileira a respeito de assuntos cruciais, como racismo, intervenção do Estado, sexualidade, violência policial, "jeitinho" e corrupção. Os resultados são indiscutivelmente simpáticos para as "elites" e pouco abonadores no que se refere ao "povão".
Em praticamente todas as questões propostas, os entrevistados com diploma de ensino superior se mostram menos fatalistas, menos conformistas, menos conservadores do que a população de baixa escolaridade. O abismo é total quando se compara o pensamento de uma mulher nordestina, analfabeta, idosa e moradora do interior com as opiniões de um jovem habitante de alguma capital do Sudeste.
Os resultados do livro caíram como uma péssima notícia nos ambientes em que é costume criticar "as elites" pelo atraso do país. Paralelamente, soam como música para os setores de classes média e alta urbanas que não engolem a popularidade do governo Lula.
O levantamento procurou utilizar questões bastante precisas para medir as diferenças de atitude da população. Pede-se, por exemplo, que o entrevistado diga se concorda ou não com esta frase: "Se alguém é eleito para um cargo público, deve usá-lo em benefício próprio, como se fosse sua propriedade".
Só 3% dos que têm curso superior concordam com isso. Entre os analfabetos, 40% acham a frase correta.
Para avaliar a presença de uma "mentalidade hierárquica" na população, Almeida valeu-se de recursos interessantes. Eis um caso: se a patroa disser à empregada doméstica que ela pode assistir à televisão na sala junto com ela, qual deve ser a atitude da empregada? Sentar no sofá junto da patroa? Assistir à TV na sala, mas pegar uma cadeira na cozinha? Continuar assistindo à TV no quarto de empregada?
Na região Sul, 72% acham que a empregada deveria se sentar no sofá. No Nordeste, a proporção cai para 55%. Entre os analfabetos, 53% acham que a empregada deve pegar a cadeira na cozinha. Só (só?) 25% dos que têm curso superior têm essa opinião.
O homossexualismo masculino é rejeitado por ampla maioria: 78% dos brasileiros mostram-se "totalmente contra" essa prática. A opinião muda um pouco se o entrevistado é do Sudeste (85%) ou do Centro-Oeste (94%), e se tem menos de 24 anos (83%) ou mais de 60 (94%).
Novamente, o decisivo nesse ponto é a escolaridade: dos que têm curso superior, só (só?) 75% são totalmente contra, enquanto entre os analfabetos a rejeição sobe a 97%.
E por aí vai. Espancamento policial, censura aos meios de comunicação, socorro a empresas falimentares, desinteresse em cuidar do patrimônio público: praticamente não há coisa criticada pelo pensamento liberal-ilustrado que não tenha apoio dos setores menos escolarizados.
Pois bem, a pesquisa provocou reações violentas. Esse sociólogo quer demonstrar que as elites são mais éticas do que a classe baixa! Para ele, o Brasil seria perfeito se o povo não existisse...!
É possível que muitos leitores do livro achem mesmo que os pobres são um grande estorvo ao nosso progresso. Mas o levantamento feito por Alberto Carlos Almeida não tem por que suscitar interpretações desse tipo.
Primeiro, porque é uma pesquisa sobre opiniões, não sobre comportamentos. As "elites", se quisermos, podem muito bem dizer coisas razoáveis e na prática agir sem ética nenhuma -e a pesquisa não se propunha a verificar esse tipo de coisa.
Segundo, porque está longe de levar a conclusões reacionárias. Ao contrário, não se atribui a nenhuma força imutável, como "o caráter nacional do brasileiro", a "herança ibérica" e coisas do gênero, a quantidade de opiniões antidemocráticas que pulula nas tabelas. O que falta é educação. Terceiro, porque se verifica que é nas escolas, e não por meio da TV e das igrejas, por exemplo, que uma visão moderna do mundo pode ser socializada.
E seria muito estranho, finalmente, se num país extremamente dividido e desigual as opiniões da população fossem homogêneas e "certinhas". Não há o que comemorar, nem do que se enraivecer, com o livro de Alberto Carlos Almeida. Constitui um retrato -o que importa é mudá-lo.


coelhofsp@uol.com.br

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