quinta-feira, 16 de agosto de 2007

"Nessun dorma"

Jornal Valor

Quando a turbulência financeira desligar o piloto automático do crescimento global, veremos se de fato o governo Lula manobra a economia. Por ora, o Brasil continua de olho pregado na volatilidade da bolsa e do câmbio. Está valendo a ordem de Turandot aos habitantes de Pequim na ópera de Puccini: que ninguém durma.


Turandot é uma princesa chinesa de outras eras. Seus pretendentes precisavam resolver três adivinhas, que ela mesma inventava. Quando erravam, eram decapitados com a mesma rapidez com que os ganhos se desfazem quando uma bolha financeira estoura.


Susto semelhante ao pânico que tomou conta dos mercados desde a semana passada ocorreu em 1998, quando se armou uma operação para salvar o hedge fund Long-Term Capital Management. Mas o LCTM se encontrava exposto a títulos de governos de maturidade longa, enquanto o tumulto recente verificou-se no segmento mais líquido do mercado, onde os empréstimos têm prazo de um dia a um ano.


O BC europeu e o Fed injetaram liquidez nos bancos. Mas uma pergunta ainda flutua no ar: a intervenção foi suficiente para restaurar a calma? Insatisfeitos, os analistas afirmam que essa crise não tem precedente.


Será? Eles disseram o mesmo em 1997 a respeito da crise na Tailândia, Indonésia, Malásia e Coréia do Sul. Até aquele ano, os investidores internacionais tinham aplaudido essas economias pelo crescimento acelerado, a estabilidade de preços, a poupança elevada e uma posição fiscal sólida, enquanto a taxa de câmbio se valorizava e as exportações perdiam dinamismo.


Apesar disso, a crise de 1997 não foi uma crise clássica de balanço de pagamentos, mas uma crise de ativos. Montanhas de recursos externos, disponíveis a taxas de juros muito baixas, tinham elevado às alturas os preços das ações em bolsa e dos imóveis. Com spreads em queda, os investidores tomaram riscos excessivos. Até que chegou o dia de ajuste de contas.


Assim é que mesmo crises diferentes são sempre precedidas por excessos financeiros. E na sua seqüela, quem perde não são apenas os investidores pouco prudentes, mas também todos os que sofrem com as recessões características dos períodos de ajuste que se seguem aos de exuberância. No momento, as economias emergentes parecem protegidas por seus superávits em conta corrente e montanhas de reservas internacionais. Mas dificilmente passariam incólumes por uma tempestade que parece envolver, além de problemas de liquidez, outros de solvência.



Turbulência não passará em brancas nuvens pelo Brasil


Muitos analistas suspeitam que uma operação mais dramática, com cortes das taxas de juros, ainda se fará necessária. Mas temem que a expectativa de inflação nos Estados Unidos eleve as taxas de juros de longo prazo e complique a situação do mercado imobiliário, mesmo que Ben Bernanke concorde em reduzir a taxa básica de juros.


Começa a perder credibilidade a idéia de que o pânico recente é apenas um soluço num mercado cuja exuberância vai continuar a premiar investidores. Mesmo que a globalização e a informática tenham criado um uso mais eficiente do trabalho e do capital, é difícil acreditar que a correção dos excessos no mercado financeiro internacional se fará sem custos.


Essa turbulência vai afetar o Brasil? Tendo cedido seu lugar à Turquia e à Hungria, o Brasil já não está na linha de tiro como há poucos anos. E temos o conforto do colchão de reservas que teria feito as delícias de Turandot.


A coreografia e a direção cênica no teatro de Moscou (onde assisti à ópera de Puccini) eram coloridas e enérgicas, mas sem nenhuma sutileza. Calaf - o príncipe sem nome que acerta as adivinhas e desperta o amor da princesa - não apenas beijou Turandot, mas a derrubou ao chão. Na queda, ela teria apreciado nosso colchão de reservas. Mesmo assim, o tombo não ficaria completamente amortecido, da mesma forma que o solavanco da turbulência financeira não passará em brancas nuvens pelo Brasil.


A esperança é que o crescimento da China persista e compense as más notícias que nos chegam dos Estados Unidos. Um resfriado nos EUA costumava causar pneumonia no resto do mundo. Não mais, dizem analistas esperançosos de que a crise iniciada com as inadimplências no mercado americano de hipotecas não se espalhe pelo resto do mundo. O "World Economic Outlook" do FMI prometeu o descasamento entre os EUA e os países emergentes, graças à maior independência do crescimento asiático.


É possível que os controles de capital na China consigam isolá-la de turbulências financeiras. Guonan Ma e Robert McCauley ("Do China ? s capital controls still bind?", BIS Working Paper nº 233 ) argumentam que os controles de capital na China funcionam, pois permitem que as autoridades chinesas detenham um grau de autonomia de sua política monetária, apesar de uma taxa de câmbio praticamente fixa desde julho de 2005.


Será bom se esses controles puderem isolar a China dos distúrbios financeiros no resto do mundo. Mesmo assim a transmissão da crise através do canal de comércio vai castigá-la. A China moderna está conectada ao mundo, ao contrário do país dos mandarins retratado na ópera em Moscou.


Aproveito para comentar que o espetáculo não chegou aos pés da montagem de Zeffirelli no Metropolitan de NovaYork em 1987, gravada em DVD com legendas em português, na qual Plácido Domingo, ainda jovem, magro e no auge de sua carreira, canta "Nessun dorma" e deslumbra deuses e mortais, apesar do rabicho chinês que lhe amarraram à nuca.


Mas voltemos à economia. Os EUA ainda são responsáveis por 25% do PIB global. A redução de seu crescimento terá reflexos sobre as exportações asiáticas. E daí sobre a demanda de commodities, com diminuição de seus preços e prejuízos para a nossa economia. Logo saberemos se a valorização do real era passageira e se deixou seqüelas.

Eliana Cardoso é professora titular da EESP-FGV e escreve, quinzenalmente, às quintas-feiras

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