quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Caminho à esquerda é o mais difícil

Jornal Valor (para assinantes)

A cientista política Lourdes Sola, da USP, constatou em entrevista ao jornal "O Estado de S. Paulo" do último domingo que o PSDB "tem um pudor enorme de se apropriar de suas realizações políticas e um medo de pânico de ser acusado de direita". O PT compartilha o pânico, mas de ser apontado como um partido de centro-esquerda e retirado da lista dos socialistas. Os dois, pelo menos, têm alguma crise de identidade, trazida talvez pelo fato de que ambos, na origem, tinham uma identificação ideológica com segmentos da sociedade brasileira, ao contrário dos partidos tradicionais. O PSDB surgiu como um partido de quadros, mas com um peso intelectual capaz de agregar elites "ilustradas" e com vocação social-democrata; o PT, como um partido de massas, que não apenas atraiu boa parte dos partidos da esquerda mais radical como uma militância que veio da área sindical e das comunidades eclesiais de base e militantes contra a ditadura que até então não tinham vínculo partidário.


No caso do PT, a atração de pessoas desvinculadas das estruturas excessivamente centralizadas (justificadas por muito tempo de atuação na clandestinidade), que dentro do partido se mantinham como facções (ou "tendências", como são chamadas), acabou resultando também na articulação de uma facção dos chamados "independentes". Ainda assim, na convivência entre os grupos e na síntese do contraditório interno, o socialismo era o centro do debate. No caso do PSDB, havia uma indiscutível hegemonia social-democrata, apesar de adesões, no início esparsas, de lideranças regionais desideologizadas, forjadas na política tradicional brasileira.


A luta pelo poder, e depois sua conquista, empurrou ambos à direita. O PSDB tem horror a essa realidade, mas consolidou-a incorporando a ideologia neoliberal nas duas presidências de FHC (1995-1998/1999-2002), vendendo-a como a chegada gloriosa do país à modernidade e à eficiência administrativa do Estado enxuto - vendeu uma ideologia como verdade racional. O processo de deslocamento ideológico foi completado pela aliança preferencial com o PFL e com a ajuda errática do PMDB para fazer maiorias. A cadeira colocada ao centro e à direita cabe a ele, apesar do "horror" a essa posição.


O PT teve a ajuda da política econômica do governo Lula no primeiro mandato para também andar uma cadeira à direita - no centro e à direita, logo depois de seu principal adversário na política nacional. A "desideologização" dos princípios neoliberais inaugurada pelos governos tucanos foi mantida, embora atenuada por uma política social mais ativa, que pelo menos não retirou dos petistas que permaneceram no partido todo o discurso de esquerda.


Mudar o destino do PSDB e do PT é difícil


Os dois partidos tentam se reposicionar, mas é difícil. O PSDB porque internamente hegemonizou o malanismo, e é difícil livrar-se dele. O PT porque, mesmo tendo conquistado o Ministério da Fazenda para o não-ortodoxo Guido Mantega, não consegue reaver um discurso que minimamente o mantenha como alternativa de socialismo (aquele no qual o Estado é dono dos meios de produção). O governo do PT não é socialista e não conseguiu chegar sequer a algo parecido com a social-democracia. Isso acentuou uma dificuldade que já estava posta para o petismo após o fim do "socialismo real", quando a maioria partidária assumiu a bandeira do socialismo democrático. Se naquele momento já era difícil definir o que vinha a ser esse socialismo - que se confunde simplesmente com a social-democracia -, no poder ficou mais difícil ainda.


No PSDB a unidade é difícil, inclusive e principalmente pelo poder desagregador do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, guindado a líder máximo, que tem sido eficiente no trabalho de acirrar discordâncias. O que hoje une o PT é uma aversão à chamada "imprensa burguesa" e uma acomodação das tendências mais à esquerda, menos sujeitas à negociação quando conviviam com os grupos mais radicais que saíram do partido rumo ao P-SOL.


O caso do PT e de Lula com a imprensa é um caso à parte. Não há dúvida de que o grosso da imprensa tradicional cumpriu um papel ideológico no ano anterior e durante o processo eleitoral de 2006. Lula não era o seu candidato; o PT jamais foi sua preferência partidária, apesar de ter mantido uma política econômica que não suprimiu benefícios dos bloco dominante. Como disse Octavio Ianni no artigo "O Príncipe Eletrônico", mais do que em qualquer outro período histórico, na globalização a informação tornou-se mercadoria - e nenhuma mercadoria é inocente. E, como afirmava o italiano Antonio Gramsci já no primeiro quartel do século passado, os jornais são aparelhos ideológicos cuja função é transformar uma verdade de classe num senso comum, assimilado pelas demais classes como verdade coletiva - isto é, exerce o papel cultural de propagador de ideologia. Ela embute um ética, mas também a ética não é inocente: ela é uma ética de classe.


Nas eleições de 2002, a imprensa, de um lado, e o eleitorado, de outro, no meio de toda essa confusão ideológica de petistas e tucanos, foram afinal aqueles que dividiram tucanos como a opção à direita e Lula como uma opção à esquerda. Nesse embate, o eleitorado derrotou a imprensa, mais do que Lula e o PT derrotaram o tucano Geraldo Alckmin e seu partido. A imprensa falhou no seu papel de formulador de consensos. Nos quatro e oito anos anteriores, o discurso de entrada do país na modernidade, reformas estruturais e quetais pela mãos dos tucanos tornaram-se um senso comum com a ajuda inestimável da mesma imprensa que não conseguiu, em 2006, vender Alckmin como um social-democrata e Lula como um corrupto. Foi o momento em que o eleitorado guinou para a esquerda, a imprensa manteve a mesma posição ideológica da última década e Lula, ao menos, acrescentou ao feijão-com-arroz da política econômica os programas sociais. A vitória nessa guerra, é lógico, foi também de Lula e do PT. É surpreendente que, depois disso, ambos mantenham a fixação nas críticas dessa imprensa que se partidarizou e foi derrotada. A única coisa que ganham com isso é uma unidade frágil, em torno da paranóia coletiva do golpismo.

Maria Inês Nassif é editora de Opinião. Escreve às quintas-feiras

maria.inesnassif@valor.com.br

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