| Como a consciência de Pinóquio, Doris Lessing alerta o mundo sobre os perigos do voluntarismo e as artimanhas do poder Antonio Gonçalves Filho O Estado de São Paulo Em seu livro mais recente, lançado no início do ano, The Cleft, Doris Lessing conta uma estranha parábola sobre o poder das mulheres, ela que em O Sonho mais Doce (Companhia das Letras, 450 págs., R$ 62,50) já havia ateado fogo às vestes criticando a esquerda e o feminismo, além de dirigir petardos a pacifistas e organizações humanitárias. Se, em O Sonho mais Doce, a escritora fala dos anos 1960 e 1980, tentando fazer um balanço do que foram essas duas décadas, The Cleft é ainda mais ambicioso: volta ao passado para imaginar o que seria uma sociedade feminista protocristã, em que as mulheres concebem por meio de partogênese e, vez ou outra, atiram uma companheira de um penhasco para apaziguar a ira sabe-se lá de quem. Na cidade das mulheres de Lessing, os homens, inevitável, aparecem para destruir a colônia feminista e têm estranhos nomes celtas. Em tempo: a história é contada do ponto de vista masculino, o de um homem de letras romano, da época de Nero, que descobre um antigo manuscrito com a história da tal sociedade.
Lessing sempre desconfiou de pernas peludas. Foi casada, sim, mas não recomenda a ninguém o uso de alianças. É alérgica. O Carnê Dourado (1962), que lhe abriu as portas do mundo literário e do mercado, explica as razões. Nele, a protagonista Anna Wulf é uma espécie de alter ego de Doris Lessing, louca para ser livre, mas presa a convenções e a um sentimento de culpa ancestral. Algo esquerdista, cheia de dúvidas e vivendo com sua filha numa Londres do pós-guerra, Anna era a arma literária de que precisavam as feministas. Como as antigas latas de marmelada, Anna é quatro em uma: mantém por isso quatro livros de anotações para refletir sobre sua condição existencial, suas posições políticas e seu papel como escritora.
É preciso lembrar sua biografia para citar as semelhanças entre a vida de sua personagem Anna e a da escritora, que desembarcou na Inglaterra aos 30 anos com dois casamentos fracassados, um bebê no colo e 100 libras no bolso, deixando para trás maridos e dois filhos do primeiro casamento. A ganhadora do Nobel nunca se arrependeu disso. No começo do ano, numa entrevista, lembrou que também Rousseau fez o mesmo com os filhos, por considerar que eles teriam melhor educação longe dele. Vergonha? Doris Lessing jura que não: 'Só tenho vergonha das mentiras que contei a mim mesma.'
Assim, o autobiográfico O Carnê Dourado antecipa o que viria depois na obra de Lessing. Inclusive The Cleft, que tenta conciliar as duas maiores influências de sua vida, aparentemente inconciliáveis: comunismo e sufismo. O indiano Idries Shah, que ela leu por volta de 1964, foi decisivo na elaboração de todo aquele ciclo de novelas místicas de ficção científica que fizeram um enorme sucesso nos anos 1980 (A Experiência de Sirius, por exemplo). Shah viveu em Londres. Influenciou outros intelectuais (Robert Onrstein, entre eles) com sua visão muito particular de sufismo - mais uma filosofia de autoconhecimento que uma corrente mística contemplativa do Islã, segundo o pensador sufi.
Lessing fez o caminho inverso de Shah. Nascida na Pérsia, tinha 5 anos quando seu pai, que perdeu a perna na 1ª Guerra, decidiu estabelecer-se na Rodésia. Leu Dickens na periferia do mundo e, portanto, tinha como comparar a vida que levavam os ingleses e os deserdados africanos. Na juventude, conheceu refugiados judeus que fizeram sua cabeça e, aos 24 anos, já lia Marx com certa facilidade, auxiliada na tarefa pelo refugiado alemão e comunista Gottfied Lessing, de quem herdou o sobrenome, mas não a preguiça. Doris escreveu muito para entender por que razão se envolveu com homens tão diferentes dela. Quem quiser saber mais detalhes deve ler O Quinto Filho (1989), que começa como uma descrição algo idílica da vida familiar para concluir que parente é mais que serpente. Para a autora, família, só em álbum de fotografia. O quinto filho do título é um garoto anti-social. Ele vem balançar a falsa harmonia de uma família que buscou na alienação a sua felicidade.
Não admira que Doris seja mais apocalíptica que integrada. Isso fica claro em sua mais popular série, dedicada a Canopus, cinco livros de ficção científica. A série começa por Shikasta (1979), uma história da Terra contada segundo a perspectiva de uma civilização mais avançada (Canopus ). Essa mesma história é interpretada de forma diferente por outros seres intergalácticos em As Experiências de Sirius (1980), mas nada indica que a forçada evolução do planeta, aos trancos e barrancos, passe de um exercício de retórica ainda contaminada pela lógica do discurso marxista dos primeiros escritos de Lessing (The Grass Is Singing, por exemplo), pasteurizado com mensagens sufistas.
Contrariamente aos críticos, Doris Lessing considera a série de Canopus seu mais importante trabalho. Compreensível. Os esforços literalmente sobre-humanos de uma sociedade mais avançada para empurrar outra sociedade menos evoluída revelam seu lado mais progressista e otimista, a despeito da crítica freqüente à série classificá-la como parábola barata sobre a nossa insignificância - isto é, a dos pobres terráqueos, ignorantes e descrentes.
Talvez seja o caso de buscar em outros livros de Doris Lessing respostas para essa obsessão por sociedades mais evoluídas. Ela agora defende a supremacia da consciência individual sobre a coletiva, argumentando que os grande escritores russos do passado falaram da experiência alheia ao escrever sobre a própria. Doris seria, assim, a verdadeira narradora de Shikasta, ocupando o posto do administrador de Canopus, que tudo sabe sobre o planeta antes mesmo de sua devastação (que aconteceria no século 20, segundo ela, o que atesta sua falência como Cassandra). Ela se sai melhor quando fala do presente. É comovente a segunda parte de O Sonho mais Doce, ambientada numa África mergulhada na ignorância, supersticiosa e tendo de enfrentar o vírus da aids, além de políticos corruptos. A indignação da escritora é sincera e justa. Só por ela já merecia o prêmio Nobel.
Obras no Brasil
O SONHO MAIS DOCE (Companhia das Letras, 2005)
ECLESIASTES(Objetiva, 1998)
DEBAIXO DA MINHA PELE (Companhia das Letras, 1997)
AMOR, DE NOVO (Companhia das Letras, 1997)
PRISÕES QUE ESCOLHEMOS PARA VIVER (Bertrand Brasil, 1996)
OS AGENTES SENTIMENTAIS (Nova Fronteira, 1988)
O PLANETA 8 (Nova Fronteira, 1987)
AS EXPERIÊNCIAS DE SIRIUS (Nova Fronteira, 1980)
SHIKASTA (Nova Fronteira, 1979) |
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