quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Vamos ver se o bom (con) senso prevalece

Por que Lula prefere negociar

Luiz Weis

Um dia Lula comentou com Hugo Chávez o que, no seu entender, era a grande diferença no comportamento político de ambos. Eles falavam das relações dos respectivos governos com os Estados Unidos, e o brasileiro observou, talvez com menos palavras do que as que se seguem, que a formação militar deixara no seu interlocutor uma afinidade com a lógica do enfrentamento. Nela, a meta de cada uma das partes é necessariamente se impor à outra, transpondo para o terreno político o que os teóricos da guerra esperam que aconteça nos campos de batalha. Já ele, Lula, aprendera na escola do sindicalismo que a negociação é preferível ao confronto precisamente porque o seu resultado não é um jogo de soma zero, em que o vencedor fica com tudo.

Pois, se os trabalhadores de uma fábrica conseguissem deixar o patrão de joelhos, fazendo-o cumprir todas as exigências apontadas para o seu peito, correriam o risco de ser atingidos pelo efeito bumerangue, caso isso enfraquecesse a companhia a ponto de levar os seus dirigentes a não oferecer novos empregos, ou, pior ainda, a cortar pessoal. Decerto o pragmático ex-líder metalúrgico teve a delicadeza de não dizer ao coronel de Caracas o que tampouco precisou que algum “barbudinho da USP”, com o radicalismo temperado pelo conhecimento, lhe ensinasse: acomodação e conflito são faces da mesma moeda, e conflito fecundo é aquele que, por vias tortuosas, conduz a um desfecho mutuamente vantajoso, ainda que mais vantajoso para uns do que para outros.

Pouco importa o que ficou daquela conversa para o bolivariano. Para o Brasil, no entanto, esse flagrante da mentalidade política de Lula - repassado por um petista que não se perderia se deixado solto nos corredores do Palácio do Planalto - ajuda a entender por que Lula nunca rasgou nota de mil, embora muitas vezes agisse como se fosse fazê-lo em menos tempo do que gastou para vestir naquele dia a camiseta com a carrancuda inscrição “hoje não tô bom”. A propósito, os americanos têm uma fórmula preciosa para rebater avaliações catastrofistas que consideram desproporcionais à realidade dos fatos. “Considere as alternativas”, propõem aos assustados.

Considerem, pois, os críticos implacáveis de Lula a alternativa com que teriam de se defrontar se, com o prestígio que o homem acumulou, sem paralelo na História nacional, tivesse ele a cabeça de um valentão político, pronto a se servir de sua imensa popularidade como arma para golpear os seus adversários. É verdade que, no auge do mensalão e na reta final da campanha de 2006, principalmente, ele não se guardou de dar um sentido ameaçador à expressão marqueteira “com a força do povo”. Mas, no íntimo, ele nunca flertou com a idéia de virar a mesa, exatamente por se guiar, desde os tempos heróicos no ABC, pela lógica do custo-benefício, que tentou transmitir a Chávez.

Como a esmagadora maioria dos políticos, Lula tem mais de uma face, e não serão raros os seus companheiros e ex-companheiros com histórias nada edificantes a contar sobre a sua intolerância com o dissenso que ele perceba como ameaça à sua hegemonia. Mas a face do Lula negociador não é uma ilusão de ótica - e eis aí a que vem a historieta da aula que deu a Chávez sobre os benefícios de saber até onde ir em situações de antagonismo. Em primeiro lugar, a democracia brasileira deu sorte. Já lá se vão 12 anos que o Planalto tem ocupantes chegados a uma negociação. Digam o que queiram os tucanos e os petistas iracundos, essa é mais uma dimensão da continuidade que, literalmente, só não vê quem não quer, entre Fernando Henrique e Lula.

Cada qual a seu modo, vai sem dizer, ambos concebem a política como um processo de encurtamento de distâncias à primeira vista insuperáveis. Isso não faz de nenhum deles uma Madre Teresa de Calcutá (antes, bem entendido, da desconstrução de sua figura). Mas não vem ao caso aqui arrolar as culpas que lhes cabem, registradas em cartório, por não terem combinado liderança e persuasão para tornar mais respirável o ambiente político. (Lula, em especial, enfrenta a robusta acusação de que, na sua era e nem um pouco à sua revelia, a poluição política aumentou no Brasil.) O que leva ao segundo motivo por que se justifica tomar o episódio do seu diálogo com o presidente venezuelano como ponto de partida para ressaltar que o País está no lucro pelo fato de também Lula valorizar a construção de consensos como viga mestra da governança, embora a impressão que passa seja a da velha compra e venda de apoios.

A tal ponto chegou a repugnância dos setores mais vocais da opinião pública com as sessões contínuas de baixaria política que toda negociação é automaticamente percebida como corrupção disfarçada. A própria imprensa tem revelado, com os escândalos que noticia, a sua própria dificuldade em ajudar o leitor a distinguir acertos espúrios de acordos legítimos. Dificuldade compreensível porque não há uma cortina de ferro a separar as coisas. Mas algo se move. Ainda que, na África, Lula tenha reagido com um arreganho à resistência do DEM, o ex-PFL, à prorrogação da CPMF, não foi à revelia dele que os seus ministros procuraram a oposição para conversar, antecipando-se à tramitação formal, no Senado, da respectiva emenda constitucional aprovada na Câmara. De volta, mandou que seguissem em frente.

Claro que governo algum negocia por bom-mocismo, mas por necessidade, quando lhe falta chão firme para prevalecer no Legislativo. Isso, porém, é detalhe perto dos indícios animadores de que enfim se voltou a fazer política, em face de uma questão essencial como o destino do imposto do cheque. “Um espírito de negociação legítima começa a impregnar as discussões no Senado”, comentou a Folha de S.Paulo. É esse espírito, reminiscente do que Lula disse a Chávez, que pode ajudar a secar a mala sangre entre o governo e a oposição extremada.

Luiz Weis é jornalista

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