União homoafetiva é matéria de Direito de Família
por Gláucia Milicio
A advogada Sylvia Mendonça do Amaral é um caso raro de militante de causa alheia. Sylvia, casada e mãe de um filho de 15 anos, é uma ardorosa defensora dos direitos dos homossexuais. E ela não é. Sua última obra a favor da causa foi a publicação do livro Manual Prático dos Direitos de Homossexuais e Transexuais.
No livro em forma de perguntas e respostas, a autora traça um panorama do quadro de direitos sonegados e garantidos a casais gays pelo Estado. Nesta entrevista à Consultor Jurídico, mostra as dificuldades da luta em defesa do direito de as pessoas simplesmente serem o que são.
O culto à diversidade no Brasil é capaz de produzir espetáculos eloqüentes como a Parada do Orgulho Gay, de São Paulo, que reuniu em junho último mais de 3,5 milhões de pessoas e é considerada a maior manifestação do gênero no mundo. Mas a vida dos homossexuais abaixo do Equador não é sempre, ou no mais das vezes, o arco-íris que a Parada Gay poderia fazer crer.
A união estável homoafetiva ainda não está regulamentada em lei e enfrenta resistência no Judiciário para ser juridicamente aceita e reconhecida. Pessoas do mesmo sexo que quiserem viver em coabitação e ter os mesmos direitos de um casal heterossexual terão de fazer um contrato para formar uma sociedade. Sua relação, na maior parte das vezes, será discutida não na Vara de Família, mas na Vara Cível.
Mesmo assim não terão acesso líquido e certo a direitos que os casais heterossexuais já têm, como o de herdar os bens do companheiro, de ser beneficiário de pensão por morte e até mesmo de adotar uma criança. O caso da adoção é paradigmático: para não depender do humor ou da mente do juiz de plantão, muitos casais homossexuais preferem adotar a criança em nome de apenas um dos parceiros da união estável. “Porque a adoção é mais fácil para um solteiro do que para um casal homossexual, mesmo que isso redunde em prejuízo para a criança adotada”, afirma a advogada.
Sylvia Mendonça do Amaral é advogada especialista em Direito Cível e de Família. Formada pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo em 1984, gasta 80% de seu tempo para defender o Direito de Família para homossexuais e o restante (20%) ela divide entre ações de indenização e outros casos de família. Também participaram da entrevista os jornalistas Daniel Roncaglia e Rodrigo Haidar.
ConJur — A lei diz que a união estável é aquela entre homem e mulher. Mas cada vez mais há a busca de reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo. Como a Justiça reconhece isso?
Sylvia Mendonça do Amaral — As pessoas estão assumindo mais sua orientação sexual e os homossexuais têm tomado iniciativa de buscar isso no Judiciário. Eu acho que terão um retorno positivo da Justiça.
ConJur — Onde tem que se encaixar essa discussão? No Direito da Família ou no Direito das Obrigações?
Sylvia — O meu interesse é que seja analisado sob a ótica do Direito de Família, porque apenas nesta esfera são reconhecidas as uniões estáveis. Não há como discutir união estável em Direito de Obrigações, nas varas cíveis. Quando eu vou entrar com uma ação dessas, morro de medo, porque tenho de brigar pela união estável. Ao mesmo tempo eu sei que, se pedir o reconhecimento de uma sociedade de fato, minha chance de êxito é muito maior. Mas em uma sociedade de fato eu não vou conseguir o que eu conseguiria em uma união estável.
ConJur — Então, para que o seu cliente tenha sucesso, é melhor recorrer à Vara Cível do que à Vara de Família. Como a senhora onde entrar com a ação?
Sylvia — Se eu não tenho um conjunto de provas muito bom, eu vou à Vara Cível. Nem tento a Vara de Família. Estou com um caso em que tenho um conjunto de provas excelente. Trata-se de um casal homossexual em que um dos parceiros morreu depois de muitos anos de vida em comum. O companheiro que morreu ficou gravemente doente nos dois últimos anos de vida. Para cuidar dele, o parceiro sobrevivente chegou a largar o emprego. A família nunca apareceu. Por isso, levei o caso para a Vara de Família. Com essas provas não dá para negar. Acontece que eu posso ter azar de o processo ser distribuído a um juiz que rejeite todas as minhas provas.
ConJur — Até porque, se ele quiser, ele rejeita com base na lei, não é?
Sylvia — Eu acho tacanho hoje em dia, em uma sociedade como a nossa, em um país como este, um juiz ignorar a realidade. O problema é que o Brasil é homofóbico. O Brasil lidera o ranking dos países onde existe mais agressão a homossexuais. Temos um homossexual morto a cada dois dias. Homossexual e transexual. Os dados são do Grupo Gay da Bahia.
ConJur — O estado do Rio Grande do Sul sempre foi visto como pioneiro em resolver esses tipos de conflitos?
Sylvia — Sim, pioneiro e super-vanguardista. Tem desembargadores ótimos, como a Maria Berenice. As decisões reconhecendo uniões estáveis, no entanto, estão espalhadas pelos estados, por isso são consideradas isoladas. Infelizmente não representam nem a metade das decisões, nem um vigésimo das decisões.
ConJur — Quais os estados mais propensos a reconhecer a união estável homossexual?
Sylvia — São Paulo reconhece bastante, nos estados do Nordeste já tem bastante decisão favorável também. Mas não sei dizer que estado está liderando o ranking.
ConJur — Quantas homossexuais a procuram por semana para entrar com processo de reconhecimento de união estável?
Sylvia — A demanda é grande. Venho notando uma coisa fantástica, que são casais em busca de medidas preventivas. Essa é a grande demanda atualmente. O que tem para proteger um casal de homossexual? Você tem um contrato, uma escritura de parceria civil ou um pacto de convivência homoafetiva. São inúmeros nomes para designar a mesma coisa que é, em essência, a união homoafetiva. Não gostam de falar em união estável por ser uma coisa que não existe, já que não está na lei. Essas são as garantias do casal homossexual.
ConJur — Qual a importância do contrato?
Sylvia — Ele é importante na separação e na partilha de bens. Para qualquer coisa que for preciso provar em relação à união estável homossexual será necessário um contrato.
ConJur — O contrato é feito no campo do Direito de Obrigações ou no campo do Direito de Família?
Sylvia — Em campo nenhum. Posso tratar como união familiar, mas existem obrigações pecuniárias e patrimoniais. Quer dizer, é o mesmo que se faz em um contrato de união estável entre heterossexuais. Regulamenta-se a partilha dos bens no caso de separação, guarda de filho se tiver adoção ou filhos de outro casamento heterossexual de um dos parceiros. A segunda medida, que talvez seja mais importante, é o testamento. A maior parte dos problemas surge após a morte de um dos parceiros. Sempre acontece discussão do sobrevivente com a família do falecido. Essa é a segunda grande demanda no escritório.
ConJur — Qual é a primeira?
Sylvia — São os contratos de convivência homoafetiva e os testamentos.
ConJur — Acontece de as famílias aceitarem a união e depois da morte de um dos parceiros, a renegarem?
Sylvia Mendonça do Amaral — A maior parte das famílias não aceita a união. Mas mesmo as que aceitam o casal em vida, quando um morre, passam a discutir direitos.
ConJur — Há caso de famílias que não reclamam herança?
Sylvia — As famílias que fazem acordo, aceitam o parceiro como herdeiro, são exceções. A maioria, quando um dos companheiros morre, abre o inventário e ignora o sobrevivente, que talvez tivesse direito a receber alguns bens. Inclusive bens para os quais contribuiu financeiramente para aquisição.
ConJur — Em caso de adoção de crianças, a Justiça tem alguma preferência quando tem de escolher entre um casal heterossexual e um casal homossexual?
Sylvia — Os homossexuais, apesar de algumas vitórias recentes, ainda têm muito medo do que vão ter de enfrentar para conseguir a adoção. É muito desgastante, porque eles enfrentam preconceito dentro do Judiciário. Ele pensa: “Vale a pena ou não? Bom, vou ter a criança do mesmo jeito se eu adotar sozinho”. E faz a adoção individualmente. Para a criança é péssimo, porque fica desprotegida em relação ao outro parceiro da união estável. Ela se torna herdeira do parceiro que adotou sozinho, não do casal. Mas é um jeito mais rápido e mais simples de se conseguir a adoção.
ConJur — A adoção é mais fácil para uma pessoa solteira do que para um casal homossexual?
Sylvia — Muito mais fácil. As negativas da adoção por casal vêm com base nisso: não existe união entre duas pessoas do mesmo sexo. Tem de ser um homem e uma mulher. Aí começa a briga. Mas as pessoas têm pouca disposição para brigar por isso.
ConJur — A decisão a favor depende do perfil do juiz?
Sylvia — Exclusivamente. Se o juiz é contrário à união entre duas pessoas do mesmo sexo, se ele é homofóbico, se prenderá estritamente ao que está escrito na lei, e a lei fala: homem e mulher, e ponto.
ConJur — Qual o argumento que o juiz costuma seguir para conceder a adoção a um casal homossexual?
Sylvia — O de que ele não é cego. Que essa forma de união também é uma maneira de constituir uma família. Hoje, existem inúmeras formas de família. Há um tempo, a família era um homem, uma mulher e seus filhos. Agora tem família monoparental. É a mulher e os filhos, é o homem e os filhos, tem vários tipos de família, inclusive a família resultante da união homoafetiva.
ConJur — Qual o perfil do juiz que geralmente concede? São juízes mais novos?
Sylvia — É muito variado. Às vezes desembargadores, que se presume que sejam mais velhos, concedem decisões que o juiz de primeira instância, que é mais novo, nega. Os mais jovens se amarram mais ao texto da lei por medo de errar pela pouca experiência.
ConJur — Os juizes mais jovens são mais conservadores na hora de aplicar a lei?
Sylvia — São, mas eu acho que é por temer um erro grave. É mais fácil ficar preso ao texto da lei do que ousar e ser muito criticado. Só que muitas vezes aplicar a lei não é ser justo. O juiz está lá para aplicar a Justiça, na verdade, e a Justiça nem sempre é o que está na lei.
ConJur — A senhora acha que essa questão deve ser analisada no STF, pelo prisma constitucional?
Sylvia — A matéria pode chegar ao Supremo, mas não para análise do mérito. O que será discutido é: o juiz de primeira instância da Vara de Família tem obrigação de analisar esse pedido? Mas ninguém está pensando no mérito da questão. Eu penso na parte técnica.
ConJur — Essa parte técnica não se confunde um pouco com o mérito. Se o tribunal superior decidir que o juiz da Vara de Família tem sim que analisar a união estável, em via indireta não está se reconhecendo que é possível haver união estável entre duas pessoas do mesmo sexo?
Sylvia — Sim, acaba se confundindo.
ConJur — Isso seria um avanço.
Sylvia — Seria, com certeza. O que pode acontecer é de o processo subir para as instâncias superiores e voltar para a primeira instância com uma determinação de que o juiz analise. Com a decisão, ele vai ser obrigado a chegar ao mérito.
ConJur — É possível o INSS conceder pensão por morte a um companheiro homossexual sem passar pela Justiça, sem o reconhecimento judicial?
Sylvia — Há concessão, mas, não é uma coisa simples de se obter. É uma coisa trabalhosa.
ConJur — No caso Richarlyson, o fato de o jogador entrar com uma ação para punir uma pessoa que o chamou de gay não é um ato também de homofobia?
Sylvia — O que o jogador queria era punir a pessoa que o discriminou. Mas quando ele entra com um boletim de ocorrência por injúria, o que fica evidente é que ele se sentiu ofendido por ter sido chamado de homossexual. Seria, então, um ato discriminatório. A saída que a pessoa tem é essa, porque na delegacia eles não registram boletim de ocorrência por discriminação. É sempre por injúria. Criminalmente é muito difícil de conseguir a condenação, mas na esfera civil, ele consegue reparação por danos morais. O boletim de ocorrência por injúria é um instrumento a mais para amparar a ação por danos morais. Às vezes, é possível fazer com que o juiz veja uma discriminação/homofobia mesmo quando o boletim é de injúria. É preciso manobrar para conseguir.
ConJur — Qual é a linha que separa a homofobia da piada de mau gosto?
Sylvia — Não pode existir piada de mau gosto. É a mesma coisa com piada em relação aos negros. Não pode existir. Porque se você fizer uma piada como essa, você estará assumindo o seu preconceito. Eu não faço piada em relação a negro ou a homossexual e não aceito que façam. Quando uma pessoa faz uma piada dessas, os demais precisam brecar. Se você passa isso para frente, estará compactuando. Não sei se eu estou sendo radical, mas eu acho que é uma coisa tão complicada no Brasil que não podemos dar espaço.
ConJur — Então a senhora acha que não há uma separação. Quem comete uma piada de mau gosto está sendo homofóbico?
Sylvia — Eu acho que está.
ConJur — Mas isso não depende de haver ou não a ofensa?
Sylvia — Eu acho que toda piada é ofensiva.
ConJur — Mas os homossexuais brincam entre si?
Sylvia — Sim. Mas é uma coisa deles. É um linguajar próprio. Eles falam que a pior ofensa é chamá-los de travesti. Eles têm uma terminologia super-própria. Tem muita gente que fala em opção sexual. Não é opção, é orientação. Falam de homossexualismo. Mão é homossexualismo, é homossexualidade.
ConJur — Como estão os projetos no sentido de reconhecer a união estável e criminalizar ofensas contra os homossexual?
Sylvia — Temos 30 projetos de lei tratando de questões homossexuais, que não andam. Um deles, da ex-deputada Iara Bernardi (PT-RS), que criminaliza a discriminação, até andou rápido. Chegou no Senado em seis anos. Quer dizer, tramitou rápido, em comparação ao projeto da Marta Suplicy, que está há 12 anos parado. Ele, no entanto, é o projeto mais completo já apresentado. As bancadas evangélica e católica contribuem para que o projeto não saia do lugar. Tudo no Congresso é uma moeda de troca: aprova o meu projeto que eu apóio o seu.
ConJur — O projeto da Marta está atualizado?
Sylvia — Ele está defasado, mas é melhor tê-lo como está hoje a não ter nada. Em 12 anos, muita coisa mudou, por isso há um grupo de estudo formado por 40 pessoas que está atualizando o projeto.
ConJur — A atualização é feita na Câmara?
Sylvia — Não, fora da Câmara. Tem pessoas de todas as áreas ajudando. Advogados, pessoas do Legislativo, representantes da sociedade. Há até médicos para analisar as questões sob o aspecto da medicina.
ConJur — O Congresso se recusa a discutir a questão?
Sylvia — Infelizmente, se recusa.
ConJur — O governo federal, em tese, tem um discurso progressista. Mas ele assume alguma posição em relação a essa questão? Patrocina algum projeto?
Sylvia — Ele fica em cima do muro. Eu já vi uma manifestação bem sutil pró-homossexuais do Lula, em uma ocasião em que pediram a opinião dele. Mas foi bem sutil.
ConJur — Existe uma política de inclusão dos homossexuais?
Sylvia — Falta uma política de Estado para fazer valer os direitos dos homossexuais, que estão garantidos na Constituição Federal. Ela diz que todos são iguais perante a lei.
ConJur — Nos casos de mudança de sexo, há transexuais que conseguem trocar o nome?
Sylvia — Está acontecendo bastante. A questão foi resolvida vagarosamente, por fases. Primeiro havia a preocupação com as questões psicológicas em razão da troca. Em seguida, colocou-se a questão da cirurgia. Depois desse impasse, a discussão começou por conta da troca de registro civil. A preocupação ainda hoje é se um futuro marido saberá que aquela pessoa com que ele casou já foi um homem. Outra questão é se a pessoa já cometeu um crime antes de mudar o registro.
ConJur — O que fazer?
Sylvia — O novo documento não vai ter o aviso “sou transexual”. A sugestão, então, é fazer um livro de registro próprio para transexuais. Quem quiser tirar alguma dúvida, faz o pedido ao cartório e consulta os dados da pessoa.
ConJur — A senhora é discriminada por defender direitos dos homossexuais?
Sylvia — Já aconteceu de pessoas me perguntarem: você tem família ou é solteira? Tem filhos? É o seu primeiro ou segundo casamento? As pessoas acham que eu já fui homossexual. Mas não sou.
Revista Consultor Jurídico
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