O Brasil e a crise no mercado subprime
Agosto é mês de cachorro louco! Na manhã do dia 9 de agosto, o Banco Central Europeu, o Federal Reserve e o Banco do Canadá anunciaram a criação de linhas de liquidez para truncar a contração do crédito bancário iniciada com a crise de inadimplência no mercado de hipotecas subprime.
O mapa com a cronologia e a propagação das perdas com hipotecas subprime foi elaborado pelo Financial Times ("Winners and Losers of the Current Subprime and Credit Market Turmoil"). Antes de 25 de junho havia apenas um perdedor na Califórnia e outro na Europa Ocidental. Em 6 de agosto já haviam 30 perdedores nos Estados Unidos e Canadá, 18 na Europa Ocidental, dois na Ásia e 3 na Austrália, com tendência a crescer. Estes fundos alavancavam suas posições com financiamentos bancários. Diante do tamanho desconhecido das perdas, os bancos cortaram o crédito não somente aos fundos, mas também às empresas produtivas, e para evitar um risco sistêmico e a maior contração na produção as autoridades foram compelidas a injetar liquidez. Aquele não era um problema "pequeno e localizado", nem restrito aos Estados Unidos. Era sim um problema de grandes proporções, que também atingia fortemente a Europa, e era capaz de se propagar afetando, através do crédito bancário, a atividade econômica mundial.
A última crise financeira de grandes proporções ocorreu em 1998, com o colapso do LTCM (Long Term Capital Management). Seus contornos já eram claros em agosto daquele ano, mas ela apenas foi "solucionada" em setembro, quando os banqueiros financiadores do LTCM foram trancados em uma sala, somente sendo libertados após assumirem totalmente os prejuízos. Sua dimensão financeira e dispersão geográfica foram menores do que na presente crise e, no entanto, poucos meses após sua eclosão, ocorreram o default da Rússia e o ataque especulativo que tirou o Brasil do regime de câmbio fixo. Será que a atual crise pode provocar algo semelhante?
Embora haja semelhanças entre estas duas crises, como a existência de fundos alavancados no seu epicentro, há importantes diferenças. O colapso do LTCM não foi a causa dos problemas russo e brasileiro, que reside nos fundamentos destas duas economias, e no máximo acelerou a sua ocorrência. A Rússia tinha déficits públicos altos uma dívida pública não sustentável, financiada em grande parte por estrangeiros. O Brasil tinha grande desequilíbrio fiscal, um câmbio fixo e sobrevalorizado e uma dívida externa muito alta e crescente. No mercado financeiro internacional, os fundos carregavam posições alavancadas em títulos de mercados emergentes e, diante das chamadas de margem provocadas pela queda de preços dos papéis russos, vendiam títulos de todos os demais mercados emergentes, inclusive do Brasil, provocando uma contração nos fluxos de capitais, o que tornava não sustentável o déficit brasileiro nas contas correntes. Se o Brasil elevasse (como elevou) a taxa de juros para compensar os investidores do crescimento do risco-Brasil, provocaria o aumento da relação dívida/PIB, que já crescera com a depreciação cambial. O aumento da relação dívida/PIB provocava o aumento do risco-Brasil, reduzindo ainda mais os ingressos de capitais, fechando-se o círculo. A alavancagem excessiva dos fundos foi um ingrediente na propagação dessa crise, mas ela não teria ocorrido caso a nossa dívida pública fosse pequena, houvesse credibilidade no compromisso com o equilíbrio fiscal, o câmbio não estivesse sobrevalorizado e a dívida externa não tivesse atingido níveis excessivos.
Ao contrário das crises financeiras, os efeitos de episódios como o atual serão sentidos a médio prazo e não pegarão ninguém de surpresa
Hoje a situação é outra e o melhor exemplo da diferença é o Banco Central do Brasil comprar dólares no mercado à vista na tarde do mesmo dia 9 de agosto em que vários Bancos Centrais funcionaram como emprestadores de última instância. O Brasil tem superávits fiscais primários, eliminou a componente dolarizada da dívida interna, externamente não é mais um devedor, e sim credor, tem um superávit nas contas correntes e reservas mais de seis vezes superiores às amortizações da dívida externa em um ano. Dessa forma, uma parada brusca de fluxos de capitais não pode afetar sensivelmente a taxa cambial. Embora o aumento da aversão ao risco eleve os prêmios de risco dos títulos brasileiros públicos e privados, e perturbe muito os planos de investimentos privados, essa elevação é pequena. A economia brasileira não está totalmente livre dos efeitos desta crise, mas através dos fluxos de capitais estes efeitos são muito menores do que eram em 1998.
Entretanto, o canal de contágio através dos fluxos de capitais não é o único. O Brasil tem sustentado superávits nas contas correntes ao lado da contínua valorização do câmbio real, porque os preços internacionais de commodities vêm provocando uma elevação semelhante dos preços médios em dólares das exportações brasileiras. A trajetória destes preços, por outro lado, deve-se à combinação de elevada liquidez e forte crescimento mundiais. Mas a euforia geradora do desequilíbrio no mercado de subprime é, em grande parte, uma conseqüência da liquidez mundial, que vem aumentando as pressões inflacionárias e provocou a reação de praticamente todos os bancos centrais, elevando as taxas de juros. Fora deste ciclo de elevação estão apenas os Estados Unidos que, no entanto, ainda não deram qualquer indicação de que o ciclo de afrouxamento poderá se iniciar. O mais provável é que, ainda que seja mínima a probabilidade de uma aterrisagem turbulenta, com a presente crise aumentou ainda mais probabilidade, que já era alta, de que ocorra uma desaceleração do crescimento mundial.
Os reflexos deste cenário sobre a economia brasileira estão longe de serem desastrosos. Porém, seus prováveis reflexos sobre o lado real da economia mundial criam um quadro menos favorável à economia brasileira. Ao contrário das crises financeiras, que caem como raios sobre as economias, os efeitos de episódios como o atual serão sentidos a médio prazo e não pegarão ninguém de surpresa. Todos sabemos quais são os males que impedem hoje o maior crescimento do Brasil, e estes fatores serão colocados a nu pela situação internacional menos favorável.
Affonso Celso Pastore e Maria Cristina Pinotti são economistas e escrevem no jornal Valor mensalmente às segundas.
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