sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Quem é a mulher que vai governar o principal parceiro do Brasil?

Janes Rocha
Valor

AP
Forte, decidida, detalhista, arrogante, vaidosa: Cristina terá o desafio de mostrar que não é só a mulher de Kirchner


"Vocês estão loucos". Essa foi a reação de Cristina Kirchner quando, há exatos 20 anos, numa reunião informal na cidade de Río Gallegos, amigos e até hoje aliados políticos sugeriram que ela se candidatasse a deputada estadual em Buenos Aires, ampliando seu horizonte político para além da gelada província de Santa Cruz, no extremo sul da Argentina. Mas ela aceitou o desafio. E, nesta segunda-feira, após uma bem sucedida carreira como deputada por Santa Cruz, por Buenos Aires e senadora, a advogada Cristina Elizabet Férnandez de Kirchner, 54 anos, assume a Presidência da Argentina.

Ela ganhou a eleição de 28 de outubro com 8,5 milhões de votos (45% do total), 22 pontos percentuais à frente da outra advogada que disputava o cargo, Elisa Carrió. Será a primeira mulher eleita pelo voto direto a governar o país. E oitavo presidente desde a volta da democracia, em 1989.


Natural da cidade de La Plata, capital da província de Buenos Aires, Cristina é militante política desde os 18 anos, quando entrou na Faculdade de Direito da Universidade de La Plata. Ganhou sua primeira eleição em 1989, em Río Gallegos, para deputada provincial (estadual), quando seu marido, o atual presidente, Néstor Kirchner, já era intendente (prefeito) da cidade havia dois anos. Chegou ao Congresso Nacional em 1995, como senadora.


A mulher que vai governar o principal sócio do Brasil no Mercosul é definida como forte, decidida, de certa forma arrogante. Um testemunho revelador sobre a personalidade de Cristina foi dado pelo advogado Tito Plaza à jornalista e escritora Olga Wornat, autora da biografia "Reina Cristina" (Editora Planeta, 2005). Tito, que foi assessor de Cristina em 1997, durante seu mandato no Senado, relatou: "Era muito difícil entabular uma conversa com ela sobre outro assunto que não fosse política. Ali estava toda a sua libido. Ela é arisca ao contato físico e a gestos de carinho, mesmo das pessoas que trabalham com ela. Mantém sempre distância, é seu estilo. (...) Ela explodia quando algo não saía como ela queria. (...) Quando ela chegava ao gabinete de mau humor, ouviam-se seus gritos e todo mundo batia em retirada. É atenciosa e respeitosa com os que considera seus pares, com os que respeita intelectualmente, não com os medíocres nem os que considera menores que ela". Plaza frisa que ela nunca o tratou mal, "pelo contrário".


A jornalista Carolina Barros, do jornal "Ambito Financiero", testemunhou uma cena que também ajuda a compor o personagem. Quando trabalhava para uma revista de análise política chamada "Avispa", nos anos 90, Carolina entrevistou a então senadora sobre o conflito de fronteira da Argentina com o Chile, conhecida como Gelos Continentais. "Impressionou-me o seu cuidado com detalhes estéticos." Segundo ela, a reportagem incluía fazer uma foto de Cristina no seu gabinete, e havia duas bandeiras, uma de Santa Cruz e outra da Argentina, em cantos separados da sala. Cristina queria porque queria que a foto a retratasse em meio às duas bandeiras, o que não era possível pela distância e pela imobilidade das bandeiras. "Poderíamos tentar, mas ela sairia distorcida. Ela insistiu tanto que tivemos que prometer a ela aplicar um 'photoshop' para que ela saísse bem e exatamente entre as duas bandeiras", disse Carolina.


Cristina é bonita, elegante e muito bem arrumada. Nunca aparece em público com agasalho, shorts ou roupas informais. Mas dizem que odeia comentários sobre sua aparência física. Ela acorda cedo, faz ginástica aeróbica e caminha pelos jardins da Residência Oficial de Olivos. Quem já participou de reuniões com ela, diz que ela toma só água mineral. A maquiagem é sagrada. "Sempre vou me pintar como uma porta", disse à biógrafa Wornat. E sua imagem pública confirma isso, embora ela tenha aliviado sensivelmente a quantidade de rímel este ano. Dizem no país que ela se atrasou para uma importante reunião do partido peronista em 2001, em plena crise pela qual o país passava, porque estava se maquiando.


O estilista argentino Marcelo Senra, que já vestiu a primeira-dama, garante que "ela sabe muito bem o que quer e do que gosta, não é nada compulsiva nem desesperada. É uma mulher elegante, urbana e real", descreveu Senra para a revista "LNR" no início deste ano.


Sobre a vida privada do casal, são poucas as testemunhas e menos ainda as que revelam detalhes. Em público, o casal, que tem dois filhos, não dá demonstrações de carinho e nem troca beijos. Só gestos de solidariedade e cumplicidade política. Também nunca fazem críticas públicas um ao outro.


Para sua biógrafa, Cristina disse que era difícil definir a relação dos dois, mas deu uma resposta muito coerente com o que ambos deixam transparecer: "Somos companheiros e esta palavra encerra toda uma definição de vida. Eu admiro muito Kirchner, por tudo. Desde que o conheço, faz trinta anos, ele nunca mudou, e amo isso. Pensamos igual e temos as mesmas convicções sobre a vida e a política como instrumento de mudança da sociedade. Antes queríamos mudar o mundo; hoje nos conformamos com algo mais humilde: mudar a Argentina. Discutimos muito e somos muito apaixonados nessas discussões. Nunca vou fazer algo que ele não esteja de acordo; se não estou convencida, posso passar dias discutindo. Kirchner é terrível, mas eu também sou...".


Eles sempre compartilharam o poder. Apesar de manter um perfil baixo no início do governo do marido, Cristina se instalou num gabinete a poucos metros do presidencial, um escritório com decoração sóbria, e dali trabalha, sempre participando das discussões sobre as grandes decisões com Néstor, que sempre leva em conta sua opinião. Por exemplo, foi ela que demoveu o marido de aceitar o cargo de chefe de gabinete de Eduardo Duhalde (presidente entre 2002 e 2003), de quem tinha uma péssima opinião: "É o poderoso chefão", dizia, comparando-o ao "capo" dos mafiosos do filme de Coppola.


Como senadora - cargo que deixou oficialmente na semana passada - Cristina foi presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais e membro da de Relações Exteriores. Mas ela raramente ia às reuniões das comissões. Na de Assuntos Constitucionais sua principal contribuição foi apresentar projetos para reduzir o número de juízes da Suprema Corte, introduzir o julgamento com jurados e sobre a participação do país na Corte Internacional de Justiça. Na de Assuntos Exteriores, não propôs nada que tivesse destaque.


No entanto, Cristina dá grande atenção à política externa, área na qual o governo de seu marido deixou a desejar. Este ano ela fez sua campanha à Presidência mais fora do país que dentro. Aproveitou bem a aproximação que já cultivava de seus tempos no Congresso com a comunidade judaica - ela presidiu a comissão de acompanhamento das investigações sobre o atentado à bomba à associação israelita Amia, em 1994. Isso lhe rendeu um apoio que agora está sendo crucial na reaproximação com o governo americano e com a comunidade financeira de Nova York, um passo importante para que a Argentina retome suas relações com o mercado financeiro, cortadas desde a moratória da dívida externa, em 2002.


Ao longo de 2007, Cristina visitou vários países, como Espanha, Franca, Estados Unidos, Venezuela, Equador México e Brasil, representando oficialmente seu país - ainda que como primeira-dama -, acompanhada pelo chanceler Jorge Taiana, que teve papel secundário nessas visitas.


Para os jornalistas, principalmente os estrangeiros, a vitória de Cristina Kirchner significa mais quatro anos de luta inglória. Nestor Kirchner tem uma péssima relação com a imprensa, a quem acusa de ser superficial e de haver perdido seu papel como interlocutor necessário junto ao público, uma noção da qual compartilham seus principais assessores de comunicação e seu porta-voz, Miguel Nuñez. Kirchner deu apenas uma entrevista exclusiva para os dois principais jornais argentinos, no ano passado. Este ano, já bem perto das eleições, falou em alguns programas de rádio. Em 2004, depois de muita insistência dos correspondentes brasileiros para que o presidente desse uma entrevista, no auge da "guerra das geladeiras" entre o Brasil e a Argentina, Nuñez se irritou e respondeu rispidamente: "Ele nunca vai falar com vocês", relata um dos jornalistas que presenciou o desabafo, feito em Puerto Iguazú, durante uma reunião de cúpula do Mercosul.


Dito e feito. Kirchner nunca falou com nenhum correspondente estrangeiro, muito menos com os brasileiros. Como fez até agora Cristina, que já foi solicitada por todos os correspondentes internacionais a dar entrevistas e sequer responde aos pedidos. Nem sempre foi assim. Enquanto estava em campanha, Kirchner falava bem com todos, e também seus principais assessores. Quando assumiram o poder, as portas se fecharam. Kirchner não fala e não admite que seus ministros e funcionários de alto escalão dêem declarações à imprensa.


A origem dessa má relação pode ser encontrada - embora não explicada - em um episódio relatado por Olga Wornat no livro "Rainha Cristina". Logo que assumiu o cargo de presidente, Kirchner sofreu uma grave hemorragia gástrica, foi parar no hospital e corria risco de vida. Acreditando ser a saúde de seu marido um assunto privado, Cristina proibiu que se divulgasse qualquer informação sobre o problema. Resultado: o país foi tomado por boatos, os mais disparatados, de que ele tinha câncer, que estava morto, que estava vivo mas ficaria carregando uma bolsinha de plástico atada ao corpo pelo resto da vida etc.


A sua biógrafa, Cristina disse que não falou com a imprensa sobre o problema de Néstor "porque não tinha vontade" e que antes de ser presidente ele era seu marido. Disse que ficou enojada com os jornalistas e fotógrafos que faziam plantão na porta do hospital e tentavam de todas as maneiras entrar para vê-lo em seu quarto. "Pareciam corvos", disse Cristina, proibindo completamente o acesso e dizendo que, para conseguir o que queriam, teriam que passar antes sobre o seu cadáver.

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