Ressuscitação e salvação
+ Marcelo Gleiser
A ciência esteve perto de realizar o mito de Frankenstein
C om a chegada do Natal, achei apropriado escrever sobre as recentes descobertas científicas na área da genética que prometem revolucionar o futuro. Não, o assunto não é células-tronco. Em 2003, quando o genoma humano foi finalizado, cientistas descobriram algo surpreendente: nossos corpos possuem restos de tipos de vírus chamados retrovírus, fósseis de batalhas imunológicas travadas há bilhões de anos.
Esses retrovírus são organismos extremamente primitivos: trata-se essencialmente de tiras de material genético circundadas por um invólucro de proteínas. Não se pode nem dizer que sejam vivos. Parasitas, apenas se reproduzem quando conseguem invadir uma célula. Ali, fazem a única coisa que sabem fazer: inserir seus genes no DNA da célula de modo que, quando a célula se divide, eles vão com ela de carona, espalhando-se cada vez mais, numa espécie de colonização celular. O HIV, o vírus causador da Aids, que é um retrovírus, já causou mais de 25 milhões de mortes.
Os pedaços de retrovírus encontrados constituem 8% do genoma. Como comparação, apenas 2% são usados para produzir todas as proteínas que nos mantêm vivos. Esses fósseis genéticos contam a história da nossa evolução, das batalhas contra doenças que definiram nossa espécie. Recentemente, o cientista francês Thierry Heidmann ressuscitou um retrovírus que estava extinto havia centenas de milhares de anos. Para tal, extraiu pedaços do vírus e, como num quebra-cabeças, reconstruiu sua estrutura genética. O vírus, acordando de seu sono profundo, infeccionou ratos no laboratório, comprovando sua eficiência. Nunca a ciência esteve tão próxima de transformar o mito de Frankenstein em realidade.
A idéia de que cientistas possam ressuscitar doenças já extintas parece assustadora. Eu mesmo senti um calafrio quando li sobre isso pela primeira vez. Mas a razão para isso não é criar armas terríveis para subjugar a humanidade (se bem que o risco que isso ocorra está sempre presente). Ao contrário, é usar os retrovírus para curar doenças, a Aids entre elas.
Por que chimpanzés carregam o vírus da Aids mas nunca contraem a doença? Afinal, nosso genoma é praticamente idêntico ao deles. A diferença mais dramática é que os chimpanzés carregam em torno de 130 cópias do retrovírus extinto Pan troglodytes (PtERV), enquanto gorilas têm 80 e nós nenhuma. Quatro milhões de anos atrás, esse vírus infectou chimpanzés e gorilas. Mas não temos traço disso no nosso genoma. Foi então que cientistas da Universidade de Rochester, nos EUA, propuseram algo revolucionário: os processos evolutivos que nos protegeram do PtERV nos deixaram vulneráveis ao HIV.
Em particular, parece que a chave está num gene que nós temos e os macacos também, chamado TRIM5 . Nos humanos, esse gene produz uma proteína que destrói o PtERV. No macaco reso, ela protege contra o HIV. Após ressuscitar o PtERV, os cientistas provaram que a proteína produzida pelo TRIM5 pode proteger contra uma ou outra doença, mas não contra as duas ao mesmo tempo.
Quando nos separamos totalmente dos macacos, há 4 milhões de anos, desenvolvemos uma proteção eficiente contra o PtERV. Mas essa proteção nos deixou vulneráveis ao HIV. O objetivo agora é tentar desenvolver uma droga que atue do mesmo modo que a proteína que protege os macacos contra o HIV. Ou seja, ressuscitação e salvação à moda científica. [Para escrever este artigo, inspirei-me na matéria de Michael Specter, "Darwin's Surprise", publica na revista americana "The New Yorker", dia 3 de Dezembro de 2007.]
MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro "A Harmonia do Mundo"
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