Cegamente dentro da bolha
Paul Krugman
The New York Times - O Estado de São Paulo
Ao anunciar a rendição do Japão, em 1945, o imperador Hirohito explicou sua decisão da seguinte forma: “A situação da guerra se desenvolveu não necessariamente em favor do Japão.”
Definitivamente, houve um toque de Hirohito na explicação que Ben Bernanke, o presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central americano), deu esta semana para a decisão “porta arrombada, tranca de ferro” de reforçar modestamente a regulamentação da indústria de hipotecas: “Em alguns casos, a disciplina do mercado foi quebrada, e, às vezes, os incentivos para seguir procedimentos para empréstimos prudentes foram corroídos.”
Essa é uma grande subestimação. A explosão dos empréstimos imobiliários “inovadores” em meados desta década foi uma catástrofe completa. Mas talvez Bernanke estivesse com medo de ser franco sobre o quanto as coisas deram errado. Afinal, uma fala sincera teria resultado numa repreensão direta a seu antecessor, Alan Greenspan, que ignorou os apelos para trancar a porta antes que fosse arrombada, ou seja, regulamentar os empréstimos quando estavam num surto de crescimento em vez de fazer isso depois que tinham ruído.
Usei a expressão “catástrofe completa” deliberadamente. Os apologistas da indústria hipotecária dizem, como Greenspan em seu novo livro, que “os benefícios de ampliar o número de proprietários de moradia” justificaram os riscos do empréstimo desregulamentado.
Mas o número de proprietários de moradias não aumentou. O grosso dos empréstimos subprime duvidosos ocorreu de 2004 a 2006 - mesmo assim, os índices de propriedade já são inferiores aos níveis de meados de 2003. Com a probabilidadede execução de milhões de hipotecas, é bom apostar que o número de proprietários será mais baixo no fim do governo Bush do que era no começo.
Nesse ínterim, durante os anos da bolha, a indústria da hipoteca atraiu milhões de pessoas para tomar emprestado mais do que podiam pagar e, simultanemente, iludiram os investidores, levando-os a investir vastas somas de dinheiro em ativos arriscados erroneamente rotulados como classificação AAA. Estimativas razoáveis indicam que mais de 10 milhões de famílias americanas acabarão devendo mais que o valor dos seus imóveis e os investidores sofrerão prejuízos na casa dos US$ 400 milhões.
Portanto, onde estavam os encarregados da regulamentação enquanto um dos maiores desastres financeiros desde a Grande Depressão acontecia? Estavam cegados pela ideologia. “O Fed deu de ombros enquanto a crise das hipotecas de alto risco se alastrava” foi a manchete de uma reportagem do New York Times sobre a falha dos encarregados da regulamentação. Isso pode ter sido uma discreta estocada no histórico de Greenspan como discípulo de Ayn Rand, a sacerdotisa do capitalismo irrestrito.
Num ensaio de 1963 para o boletim de Ayn, Greenspan rejeitou como mito “coletivista” a idéia de que, se deixarmos os empresários fazerem o que quiserem, “eles tentariam vender alimentos e medicamentos inseguros, valores mobiliários fraudulentos e prédios de má qualidade”. Ao contrário, disse, “é do interesse de todo homem de negócios ter uma reputação de fazer transações honestas e oferecer um produto de qualidade”.
Portanto, não é de estranhar que ele tenha descartado as advertências sobre práticas de empréstimo enganosas, incluindo aquelas de Edward M.Gramlich, membro do conselho do Fed. No mundo de Greenspan, o empréstimo predatório - assim como as tentativas de vender brinquedos envenenados - simplesmente não ocorre.
É claro que, agora que tudo deu errado, pessoas ligadas à indústria financeira estão repensando a crença na perfeição dos livres mercados. Greenspan se manifestou em favor de, isso mesmo, um socorro financeiro do governo. “Há dinheiro disponível”, disse ele - querendo dizer dinheiro dos contribuintes.
Dado o papel da ideologia conservadora na calamidade das hipotecas, é de estranhar que os democratas não sejam mais agressivos em transformar essa catástrofe numa bandeira para a eleição de 2008. Deveriam, pois é difícil imaginar demonstração mais explícita do que está errado na crença econômica de seus opositores.
*Paul Krugman escreve para o ‘New York Times’
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