domingo, 30 de dezembro de 2007

A feiúra concreta de São Paulo

No boom imobiliário há espaço para projetos que integrem a cidade, em lugar de isolar moradores

Hugo Segawa*

O Estado de São Paulo - Caderno ALIÁS


Não é preciso ser um leitor muito atento para perceber quão difícil ficou ler as matérias em nossos maiores jornais. Não me refiro a qualquer renovação gráfica na grande imprensa, mas à profusão de anúncios que há alguns meses toma páginas inteiras oferecendo produtos imobiliários em quase todos os quadrantes da cidade e fora dela. A “febre dos imóveis” se diagnostica em estatísticas eufóricas para o setor. Dados da Associação Brasileira de Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip) dão conta que a concessão de crédito imobiliário cresceu 141,34% de 2005 a 2006, o financiamento imobiliário em 2007 deverá dobrar em relação ao ano anterior e poderá continuar crescendo na ordem de 25% ao ano até 2010. Para o Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo, o PIB da construção civil deve fechar 2007 com crescimento da ordem de 9,3%, e para 2008 a expectativa é da ordem de até 14%. O setor deverá contribuir com 4,5% a 5,5% do total do PIB brasileiro. A capitalização do setor é bilionária: em 2007, o setor foi responsável por 22,6% dos novos lançamentos de ações na bolsa (IPO, na sigla em inglês).

Para aqueles ligados em estatísticas, os números são significativos e as notícias neste final de 2007 sugerem um panorama alentador. O Brasil é a décima maior economia do planeta, segundo o Banco Mundial. Recente é o anúncio de que o Brasil ingressou na lista dos países de alto desenvolvimento humano, conforme o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da Organização das Nações Unidas, apesar de ser o lanterninha do grupo. Classificação que disfarça contradições e evidencia a desconfiança sobre números. Outros indicadores socioeconômicos revelam que somos campeões em várias desgraças. Não é preciso muito tirocínio para perceber o descompasso entre a riqueza econômica, o desempenho social e a qualidade de vida do País. Oxalá essa afluência em 2007 deflagre a reversão desse quadro negativo. As vistosas páginas de lançamento nos grandes diários devem ser apenas a ponta do iceberg de megaoperações imobiliárias. Pode-se perguntar: o que o crescimento a “taxas chinesas” da construção civil representa para nossas cidades, em especial para São Paulo? Em que medida esses recursos podem contribuir para a melhora da qualidade de vida desta metrópole?

As propagandas de condomínios fechados, “prédios-clubes” ou “clubes residenciais”, exaltam as virtudes introvertidas de itens de lazer e segurança, “áreas verdes” ou boas “vistas” (até o novo condomínio vizinho estragá-las), e raramente mencionam as qualidades dos bairros em que se situam. Quase nenhum se prende a questões básicas, como transporte e outras facilidades urbanas. Revelam o completo descompromisso com o espaço público e/ou o seu melhoramento. O modo como se pulverizam os empreendimentos imobiliários pela área metropolitana e cidades vizinhas ratifica a concordata do espaço público.

O temor pelo público (entenda-se: que pertence à coletividade) manifestou-se em 2007 na intempestiva tentativa de um grupo de vereadores de cercear a autonomia do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Compresp). Uma restrição construtiva, de natureza quase pontual, no bairro do Ipiranga, perturbou os interesses de investidores, transtornados com a “interferência” do Compresp. O episódio é representativo, alegoricamente, das posições em defesa e em desrespeito à qualidade de vida urbana. Cidades com atividade imobiliária muito mais intensa, como Roterdã, na Holanda, possuem conselhos com quase mais poderes de decisão que o nosso Compresp - sobretudo, graças ao interesse e apoio da sociedade nas causas em defesa da cidade.

Espaços públicos são os lugares menos privilegiados em recentes intervenções urbanas. Em São Paulo, a nova Faria Lima reproduz os erros da avenida Luis Carlos Berrini. O novo eixo privilegia a circulação, com mal-ajambradas quadras lindeiras ao longo da via, e com o agravante de ostentar prédios que devem ser um sucesso imobiliário, mas, de modo geral, de arquitetura medíocre.

O maior empreendimento imobiliário em curso na cidade, o Parque Cidade Jardim (visível da Marginal de Pinheiros), pode ser comparado ao empreendimento Tokyo Midtown, um complexo de uso misto inaugurado em março de 2007 numa área de dez hectares no coração da capital japonesa.
Situado em Roppongi, totalmente integrado ao meio e à infra-estrutura urbana, a realização em Tokyo abriga mais usos e franqueia à cidade um enorme jardim japonês, que o toquiota está descobrindo e paulatinamente se apropriando. A arquitetura, de linha contemporânea, resultou da associação entre a Nikken Sekkei (a maior construtora nipônica) e o escritório norte-americano SOM. Também conta com projetos de Kengo Kuma e Tadao Ando, responsáveis pelas áreas de museus do complexo. É parte dos compromissos do empreendimento um item sobre responsabilidade social, na qual a consciência ambiental, a economia de energia e recursos e as relações com a região são parâmetros na inserção do Tokyo Midtown na cidade. Além de uma atração para o consumo e diversões, trata-se de uma obra que faz parte do roteiro de arquitetura da cidade - como toda cidade aprazível oferece. Não será o caso do Parque Cidade Jardim. Não parece haver dúvida sobre seu potencial financeiro e imobiliário (assim apostam os agentes financeiros), mas sua arquitetura é bastante duvidosa. A publicidade do empreendimento não identifica o arquiteto, como seria natural e valorizador em bons empreendimentos europeus ou japoneses. Sua arquitetura retrô está na contramão de qualquer inventário ou roteiro de boa arquitetura neste início de milênio. O que alguns apregoam como uma jóia, não passa de um falso brilhante. E só reforça o caráter provinciano do gosto de certa elite. Aqui pode-se estabelecer uma outra correlação.


A construção civil brasileira se abriu para o investimento internacional. Fato inédito em tempo recente é que cerca de 70% dos recursos na área têm origem no capital estrangeiro, ingressando quer via bolsa, quer via associações com projetos locais. São Paulo é a nossa representante no rol das “cidades globais” pelos fluxos e sinergias do maior aglomerado sul-americano na rede mundial de metrópoles. Por ora, São Paulo não é uma cidade que se credencia a transformações na lógica da “cidade-espetáculo” ou “cidade-marketing”, modelada pela organização de eventos globais: exposições mundiais, jogos olímpicos ou, no caso específico da região do Euro, tornar-se a “capital cultural” no rodízio anual de cidades de interesse cultural. A pré-candidatura paulistana em 2003 aos jogos olímpicos de 2012 foi um tímido aceno em busca de um vetor para detonar transformações ambientais e de infra-estrutura urbana com mobilização de capital nacional e internacional. Nada se especula, ainda, sobre as diretrizes para receber os jogos da Copa do Mundo de 2014 em São Paulo, mas há de se ter cautela quanto à estratégia que se apresentará, a partir da experiência do Pan 2007 no Rio de Janeiro. Sobretudo quanto à arquitetura, cuja contribuição à paisagem carioca foi medíocre, para não dizer conflitiva com o próprio patrimônio ambiental do Rio de Janeiro, na polêmica tentativa de intervenção da Enseada da Glória e da Prainha, na área do Parque do Flamengo. Na lógica das cidades globais, a arquitetura tem um papel fundamental na afirmação e inserção nos circuitos internacionais. O Guggenheim de Bilbao é o principal case-study de planejamento estratégico de uma iniciativa em que um edifício foi capaz de provocar a revitalização de uma cidade sem que ela abrigasse particularmente qualquer evento global, senão o próprio edifício do arquiteto Frank Gehry. Mas boa (ou polêmica) arquitetura não é necessariamente ou apenas instrumento de mercantilização da cidade. Boa arquitetura é direito dos cidadãos.

Nesse sentido, pairam dúvidas sobre o que se sucede na área que se tornou conhecida como Cracolândia, que a administração municipal batiza de “Nova Luz”.

Desde 2005, a prefeitura vem alardeando a remodelação de uma área cuja menção nos jornais se distribui entre o noticiário policial, local e político. De concreto, incentivos fiscais e outros benefícios administrativos tentam seduzir empresas - de tecnologia, call centers, cultura e publicidade, conforme anúncio do governo - sem, todavia, qualquer manifestação oficial das “interessadas”. E temos por ora a demolição de alguns imóveis que insinuam uma paisagem pós-bombardeio, numa guerra em que as partes não sabem bem quem são os adversários ou aliados. O informe mais recente é que o Estado pretende desapropriar o edifício da antiga estação rodoviária na Praça Julio Prestes para ali instalar um centro cultural. Todas essas notícias soam como factóides frente ao futuro da região. Outras notícias dão conta de que grandes construtoras estão interessadas em investir na área, incluindo uma que teria a consultoria do arquiteto, ex-prefeito de Curitiba e ex-governador do Paraná Jaime Lerner. O segredo imobiliário não permite ainda ao paulistano conhecer uma intervenção numa área de 269 mil metros quadrados, declarada de utilidade pública pela administração municipal. No coração da metrópole paulistana, são muito mais que duas vezes a área de Tokyo Midtown, e três vezes a do Parque Cidade Jardim. Sem uma proposta com desenho urbano, não há como avaliar o impacto e as responsabilidades inerentes a um possível megaempreendimento arquitetônico no centro de São Paulo. Retomo a pergunta inicial: em que medida a abundância de recursos pode contribuir pela melhora da qualidade de vida desta metrópole?

Lembro as palavras de Roger Bastide, um dos professores pioneiros da USP: “Se a beleza do Rio de Janeiro é uma beleza natural, a de São Paulo é beleza de cimento... A mão do arquiteto, aqui, substitui a mão de Deus”.

*Hugo Segawa é arquiteto, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo


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