segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Congresso investiga e julga, Judiciário e Executivo legislam

Luiz Cláudio de Castro- O Globo Online

BRASÍLIA - Freqüentemente os parlamentares brasileiros acusam o Judiciário de legislar e invadir áreas de competência constitucionais do Legislativo, mas uma rápida análise da atuação do Parlamento nos últimos dois anos indica de quem é a culpa por essa anomalia institucional. Desde que vieram à tona as denúncias de corrupção nos Correios, em maio de 2005, que desaguaram no escândalo do mensalão, deputados e senadores passam mais tempo investigando colegas e dando explicações do que fazendo leis, função para a qual foram eleitos. O exemplo mais recente é o julgamento da fidelidade partidária pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

Se o Congresso não legisla e não faz a reforma política, que vive saindo e entrando na pauta, o Judiciário rouba a cena e interpreta a lei para dar respostas às demandas do mundo político. É a chamada judicialização da política. O cientista político David Fleischer, professor emérito da Universidade de Brasília (UnB), cita pelo menos três matérias de grande repercussão em que o Judiciário legislou nos últimos anos: verticalização das eleições, partilha do fundo partidário (depois modificada no Congresso) e fidelidade partidária.

- O Judiciário está invadindo a competência do Legislativo desde a verticalização. No início deste ano teve outra intervenção para mudar o fundo partidário, mas rapidinho o Congresso agiu para aprovar, a toque de caixa, um projeto reagindo à intromissão do Judiciário - afirma.

Nos últimos 30 meses, desde o início da crise do mensalão, os parlamentares estiveram debruçados sobre pilhas de papéis com denúncias contra colegas ou trancados com um batalhão de advogados atrás de uma resposta minimamente convincente para mais uma das denúncias diárias publicadas na imprensa. Refresco, só nos recessos e no início da atual legislatura, quando as duas Casas puderam se dedicar a matérias essencialmente legislativas. Mas mesmo nesse período, a Câmara julgou e absolveu parlamentares acusados de envolvimento com a máfia dos sanguessugas na legislatura passada e reeleitos para um novo mandato.

Parecia que os escândalos eram página virada, mas logo surgiram novas denúncias, dessa vez tendo como alvo principal o Senado, até então menos visado que a Câmara. Uma delas levou à renúncia do senador Joaquim Roriz (PMDB-DF). Já o presidente da Casa, Renan Calheiros (PMDB-AL), vem se segurando como pode, escapou de um processo, mas ainda responde a três. Na Câmara, o deputado Mário de Oliveira (PSC-MG) é acusado de tentar matar o colega Carlos Willian (PTC-MG). Já Olavo Calheiros (PMDB-PE), irmão de Renan, corre o risco de perder o mandato por supostamente favorecer uma cervejaria que comprou uma fábrica de sua família.

Sob pressão, Congresso reage

Diante do desinteresse dos parlamentares em aprovar a reforma política, a Justiça Eleitoral decidiu restringir ela própria o troca-troca partidário. Só então o Congresso saiu da apatia e aprovou uma proposta raquítica de fidelidade partidária, que por sua vez deixa inúmeras brechas para os infiéis. Inconformados com a revoada de parlamentares para a base aliada, DEM, PSDB e PPS levaram a matéria ao STF e pediram de volta os mandatos dos infiéis. David Fleischer lembra que o troca-troca partidário não é privilégio deste governo ou legislatura.

- O DEM esquece que em 1995 eles ganharam 15 deputados que deixaram partidos da oposição para entrar no PFL, que era governo - alfineta Fleischer.

Outro caso típico de judicialização ocorreu em abril, quando sete dos onze ministros do STF defenderam a aplicação da lei que regulamenta a greve de trabalhadores do setor privado em paralisações dos servidores públicos. Embora o direito de cruzar os braços tenha sido concedido ao funcionalismo público pela Constituição de 1988, o Congresso nunca chegou a um consenso para aprovar uma lei disciplinando esse tipo de mobilização. Na ocasião, os integrantes da mais alta corte do Judiciário disseram que a omissão dos parlamentares tem prejudicado os servidores. Dois deles falaram claramente da inércia do Congresso:

- Se há o abuso do poder de legislar, esse é um caso de abuso do poder de não legislar - disse a ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha no julgamento.

- Não mais se pode tolerar esse estado de continuada, inaceitável e abusiva inércia do Congresso Nacional - concordou o ministro Celso de Mello.

Por outro lado, enquanto o STF e o TSE desempenham o papel para o qual foram eleitos legisladores, estes se investem na função de polícia, transformam o Congresso numa grande delegacia e disputam câmeras e microfones para anunciar mais uma novidade da investigação contra este ou aquele colega que virou a bola da vez. Na busca dos holofotes, vale tudo, de quebra de sigilo a voz de prisão, instrumentos típicos do Judidiário e das polícias.

Em meio à confusão entre Legislativo e Judiciário, o Executivo também vai avançando sobre a competência do Parlamento, impondo sua agenda por meio de medidas provisórias. Quando o Congresso derruba uma MP, como foi o caso da que criava a Secretaria de Planejamento de Longo Prazo, o Executivo recorre a outro instrumento para fazer valer sua vontade: o decreto. Para o senador Jefferson Peres (PDT-AM), o Legislativo virou um sublegislador, perdendo espaço para os outros dois poderes. Há doze anos no Senado, Jefferson Peres admite a culpa do Legislativo pelo esvaziamento de sua função constitucional, amparada na harmonia entre os três poderes.

- O Executivo se tornou o grande legislador. Em grande parte das vezes, a culpa é do próprio Legilslativo. Como ele não legisla, não supre as lacunas da lei, o Judiciário se julga no direito de suprir essas lacunas. O Congresso virou um sublegislador. Se você olhar, nos últimos anos, 90% das leis são decorrentes de medida provisória - afirma o senador.

A despeito dos problemas gerados pela judicialização da política, David Fleischer vê na intromissão do Judiciário uma forma de forçar o Legislativo a cumprir seu papel constitucional, especialmente no caso do julgamento da fidelidade partidária.

- Isso pode apressar a medida que regulamenta a fidelidade partidária. O Congresso deveria ter aprovado, tem sido omisso. Então, o Judiciário age - afirma o cientista político.

David Fleischer lembra que a Constituição de 1969, do regime militar, previa a fidelidade partidária, mas a matéria não entrou no texto da Constituição de 1988.

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