segunda-feira, 8 de outubro de 2007

"Brasil precisa mudar rede de saúde para atender idoso"



Entrevista da 2ª/Alexandre Kaleche

Folha de São Paulo


Chefe de envelhecimento da OMS defende que os médicos aprendam a lidar com a terceira idade e que o jovem seja sensibilizado para o fato de que "envelhecer é bom'

O Brasil precisa mudar a rede de atenção básica à saúde para atender as necessidades da população idosa, que atinge a marca de 17,7 milhões no país. A análise é de Alexandre Kalache, chefe do programa de envelhecimento e saúde da OMS (Organização Mundial da Saúde), que está no Brasil para lançar um guia mundial em que o Rio aparece como cidade amiga do idoso.

CLÁUDIA COLLUCCI
DA REPORTAGEM LOCAL

Às vésperas de completar 62 anos (dia 17) e se aposentar da OMS, Kalache vai montar no Rio de Janeiro o instituto latino-americano de gerontologia, ligado à Universidade de Londres e que tem como parceiros o Banco Mundial e a Academia de Medicina de Nova York.
"Em vez de ir para casa assistir à TV, vou agitar muito. Vamos levar o Brasil para o mapa da gerontologia internacional e vice-versa. Vou continuar ativo por muitos anos e, depois, vou plantar batatas na minha casinha na Espanha", diz ele, dois filhos e uma neta.
Há 33 anos morando no exterior, o carioca Kalache é PhD em epidemiologia pela Universidade de Oxford, foi fundador da Unidade de Epidemiologia do Envelhecimento da Universidade de Londres e criador do primeiro mestrado em promoção da saúde da Europa. A seguir, trechos da entrevista concedida à Folha de Nova York, por telefone, na última sexta.

FOLHA - A OMS tem difundido o conceito de envelhecimento ativo, mas, no Brasil, envelhecer com qualidade ainda é para poucos. Quais estratégias o país precisa adotar para colocar o discurso em prática?
ALEXANDRE KALACHE
- A definição do envelhecimento ativo é baseada em três pilares: saúde, participação e segurança. Na saúde, a coisa mais importante no Brasil é reforçar, capacitar a rede de atenção primária para que ela esteja mais voltada às necessidades dessa população que envelhece. Hoje o SUS está muito voltado para a saúde materno-infantil.
A OMS tem desenvolvido estudos-pilotos, criando uma espécie de caixa de ferramentas sobre como fazer para que o centro de saúde se torne mais amigo do idoso. No Brasil, envolvemos dois centros, em São Paulo [em São Miguel Paulista] e no Rio [em Manguinhos]. Simulamos o envelhecimento, colocamos a equipe no centro de saúde simulando como se tivesse catarata, usando uma lente meio opaca, peso nas pernas, nas coxas, braços, grãos no sapato para doer um pouco, cera no ouvido. As pessoas nunca esquecem dessa experiência.
Também precisamos mudar aspectos administrativos. Existem postos de saúde que não têm nenhum sistema de marcação de consulta. Esses pobres idosos levantam às 5h da manhã, vão até o centro, recebem um número e, ao final da manhã, descobrem que o médico já foi embora e que ele não será mais atendido. Isso é um absurdo, uma falta de respeito. Em relação ao ambiente físico, o centro de saúde precisa eliminar as barreiras físicas, colocar rampas, elevadores, sala de espera mais confortável com acesso ao banheiro.

FOLHA - Qualidade de vida na velhice está ou não diretamente ligada a um maior poder aquisitivo?
KALACHE
- É muito mais difícil conseguir qualidade de vida se não tiver um teto sobre a sua cabeça, se não tiver a certeza de como se alimentar ou, se ficar doente, se terá o mínimo de assistência médica. Por outro lado, você não precisa ser milionário ou rico para ter qualidade de vida. Você vê milhões de brasileiros que estão envelhecendo, inseridos na sua comunidade, com suas famílias, vivendo bem. Estou conversando com você de Nova York, uma cidade de primeiríssimo mundo, onde você encontra idosos que, embora tenham suas necessidades básicas satisfeitas, vivem isolados, numa família fragmentada, reflexo das grandes massas migratórias. São pessoas que estão envelhecendo fora do seu meio ambiente. Em São Paulo, por exemplo, a gente vê o imigrante nordestino, a mulher que foi trabalhar em casas de família e que, muitas vezes, não constituiu a sua própria família, e que, ao envelhecer, está só, triste, sem qualidade de vida.

FOLHA - O sistema de saúde continua a enfatizar o cuidado com as doenças agudas, enquanto as que mais afetam os idosos são as crônicas. Isso não tem que ser revisto?
KALACHE
- Sem dúvida. Temos no Brasil a idéia de que as doenças que podem ser prevenidas são as infecciosas e que as doenças não-transmissíveis são inevitáveis dentro do processo de envelhecimento. Hoje há muita gente com 60 anos e que está muito mal e outros com 80 que estão muito bem.
Se você controlar apenas quatro fatores de risco, o fumo, a dieta inadequada, a falta de exercício físico e o consumo excessivo de álcool, já terá um impacto muito grande. Se a gente não tiver política preventiva, de promoção de saúde fortemente ativa, isso, que já é um problema de saúde no país, vai se tornar uma epidemia.
Em segundo lugar, mesmo que o indivíduo se comporte muito bem, tenha um estilo de vida saudável, você ainda tem um ingrediente social muito grande. Por exemplo, na Inglaterra, se você compara as classes sociais A e B com as D e E, você tem um excesso de risco, que se traduz na redução de oito anos na expectativa de vida [das D e E], mesmo aqueles mais pobres que nunca fumaram, praticam exercício físico e comem razoavelmente bem.
No entanto, a diferença social, talvez pela falta de cidadania e auto-estima, faz com que os mais pobres vivam muito menos mesmo vivendo no mesmo ambiente físico. É preciso levar em conta essas determinantes sociais e agir sobre elas.

FOLHA - Temos no Brasil perto de 550 geriatras contra 30 mil pediatras. Com o envelhecimento da população, esse quadro deve mudar?
KALACHE
- Até certo ponto. A gente não vai conseguir formar geriatras em quantidade para atender, em planos mundiais, 2 bilhões de idosos no ano de 2060. A gente vai poder fazer com que todos os profissionais de saúde saibam aquilo que seja a essência, a base da atenção do idoso. Estou muito mais interessado em que todos os ortopedistas de amanhã, todos os oftalmologistas, todos ginecologistas, todos cirurgiões saibam lidar com idosos e entendam o mínimo sobre a fisiologia do idoso, a anatomia, a depressão, a saúde mental do que formar especialistas. Do contrário, o risco é você acabar medicalizando e tornando o envelhecimento uma especialidade e não uma etapa da vida. O papel do geriatra é muito importante porque, você tendo bons geriatras, terá bons treinadores daqueles profissionais que precisam ser treinados.

FOLHA - O que o futuro médico precisa aprender sobre o idoso?
KALACHE
- A OMS e a Associação Internacional de Geriatria e Gerontologia lançaram 15 pontos de currículo mínimo sobre cuidados relacionados ao envelhecimento que todos os estudantes de medicina deveriam ter: anatomia, farmacologia, a manifestação clínica das doenças, que é diferente quando você tem 80 anos do que num adulto de 40, como o organismo responde às dosagens de medicamentos etc. Daqui a 40 anos, o mundo terá envelhecido de forma irreconhecível. O médico vai lidar com mais e mais e mais idosos. Se você, desde o início, não tiver a atitude correta e o conhecimento adequado, você vai fazer mal, mesmo que inadvertidamente.
E não só em medicina, mas em enfermagem, em arquitetura, em direito. Temos que sensibilizar a juventude de que o país está envelhecendo e que isso é uma coisa boa, que envelhecer é a negação da morte precoce.

FOLHA - O modelo de aposentadoria não-contributiva do Brasil continuará sendo sustentável?
KALACHE
- Vários estudos mostram que com 2% do Produto Interno Bruto você consegue atender as necessidades de mais de 7 milhões de brasileiros. Se a economia crescer, como tem crescido, não há nenhuma razão para que isso não seja sustentável. Você tem que ver o que a sociedade está ganhando e não o que está perdendo. Ela "perde" 2% do PIB, mas tira da miséria 25 milhões de brasileiros [familiares dos aposentados]. Na avaliação do Banco Mundial, modelos como o Brasil e da África do Sul, que são muito parecidos, demonstram a sustentabilidade. O que não é sustentável é continuar com privilégios e distorções em que alguns poucos pesam 50, 60, 70 vezes mais do que esses miseráveis US$ 100 [da aposentadoria não-contributiva]. Esses são os pesos que estão fazendo com que o seguro social no Brasil se torne inviável.

FOLHA - Há no país uma cultura pelo padrão de beleza física jovem. É mais difícil para o brasileiro encarar o envelhecimento?
KALACHE
- Fica mais difícil, não há dúvida que existe essa obsessão. Por outro lado, se você anda pelas ruas de Copacabana, você vê milhares de pessoas idosas. E, embora em choque com a cultura do corpo, com a idealização da juventude, você vê pessoas de todos os formatos de corpo, pessoas gordas, magras. Existe no Brasil uma adaptação, uma coisa mais flexível, que não consegue punir aqueles que fogem à regra.


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