"A classe média alta é a classe mais baixa da população. Ela está tão desesperada que corre atrás de qualquer coisa que se diga."
Uma cidade degenerada
O arquiteto Paulo Mendes da Rocha ergue e destrói a paisagem urbanaDa janela do escritório de Paulo Mendes da Rocha vê-se o Edifício Copan, desenhado por Oscar Niemeyer. “É linda essa ponta do prédio, não?” É assim, meio ao acaso, que os mais destacados arquitetos brasileiros se encontram em São Paulo. Mendes da Rocha mantém, no centro da cidade, o estúdio amplo, com lâmpadas industriais, onde foram traçados o Museu de Arte Contemporânea da USP, o ginásio do Clube Paulistano (SP), o Estádio Serra Dourada (GO), a cobertura da Praça do Patriarca (SP) e mais incontáveis obras.
Ganhador do Prêmio Pritzker 2006, espécie de Nobel da arquitetura, Paulo Mendes da Rocha, de 79 anos, vive tempos de celebridade. Para tocar os projetos em andamento (um prédio de habitação “social” em Madri, o campus da Universidade de Vigo, também na Espanha, e a recomposição da antiga Santa Casa, no Rio, entre eles), tem sido obrigado a dizer não para convites vários, de entrevistas a júris internacionais. Mas, na segunda-feira 13, passará a noite a autografar os livros Projetos de 1999-2006 e Maquetes de Papel, editados pela CosacNaify. “Acho tão gentil terem feito os livros”, diz, como se pensasse em voz alta, enquanto gira um compasso no papel.
O arquiteto tem o hábito, entre um cigarro e outro, de desenhar círculos enquanto conversa. É também de grandes voltas que se constitui sua fala. Pensador das cidades, inventor dos espaços, ele anda serenamente aflito. Vê um desastre urbano. Mas não desacreditou das saídas.
CartaCapital: O senhor cansou de dar entrevistas?
Paulo Mendes da Rocha: Você fica num dilema. De um lado, acha que tem de falar porque é um prestígio para a arquitetura e uma forma de levá-la ao conhecimento do poder público. Por outro lado, há o pudor de ser abordado. Mas acho, no fundo, que eu devia me obrigar a dizer certas coisas, porque o que nos persegue, dia após dia, é a aflição com a cidade. Essa é uma questão técnica ligada à arquitetura e ao urbanismo. A rigor, devíamos ser mais ouvidos no plano político, nas questões de desenvolvimento das cidades. É uma pena que haja uma tendência de a arquitetura se tornar banal. Isso é decorrência da vertigem mercantilista do nosso tempo. Precisamos cuidar das cidades. Falamos em água, ar, mas o que pode acabar antes somos nós mesmos.
CC: O Pritzker teve algum efeito político ou o senhor se sente pregando no deserto?
PMR: Politicamente, o prêmio significa que o mundo se preocupa com as coisas das quais eu trato. A questão fundamental das cidades é política. São políticas públicas que direcionam as cidades para um destino ou outro. Quando olhamos da janela uma cidade como São Paulo, vemos uma coisa imensa construída. Acharmos que vemos um desastre é uma desmoralização da imagem que temos de nós mesmos. Trânsito, poluição, ostentação de riqueza e falta de esgoto, má distribuição da população pelas construções nos fazem ver que a arquitetura, sem querer, produziu a desmoralização da técnica. Somos um país onde todos são engenheiros, juristas, economistas e médicos. E o resultado é o desastre. A reflexão, portanto, deveria se dar no campo político. Também é perigoso adotar uma visão esnobe, evitando falar de trânsito por ser um lugar-comum. É importante repetir as reflexões sobre o desconforto nas cidades com outra visão, não superficial.
CC: Quais são os lugares-comuns sobre o trânsito, por exemplo?
PMR: É como se tivéssemos inventado uma máquina de produzir veneno e, todo dia, nos empenhássemos em aprimorá-la. A questão dos transportes é fundamental. Não se trata, puramente, de introduzir conforto. Trata-se de ver que, queimar petróleo para transportar uma pessoa de 60 quilos numa lataria de 700 quilos, que não anda, é um erro grave. É repugnante ver a cidade congestionada de carros que não andam. A questão não é fazê-los andar, é ver que isso não tem saída, o transporte individual é uma bobagem.
CC: Então é uma bobagem construir túneis e viadutos?
PMR: Vai se aprimorando a máquina do veneno. E já não importa que o carro não ande, porque você vê todo mundo lá dentro falando no celular, usando o laptop...
CC: Quando vê, já que os vidros estão pretos.
PMR: Sim, quando vê, porque as pessoas estão escondidas. É um pouco a rota do absurdo. Acho até que isso não é assunto pra mim, mas para Borges, Cortázar ou Rabelais. Quando ouço, no rádio, que são 157,8 quilômetros de congestionamento, penso na linguagem de descalabros do Rabelais. O absurdo pode ir a dimensões do desastre. As pessoas fingem que não são antropófagas, mas são. Está todo mundo caçando feras. Desenvolveu-se uma mentalidade extremamente agressiva nas pessoas, que, entretanto, acham que se comportam bem. Ricos ou pobres, parece que está um querendo matar o outro.
CC: O senhor sempre diz que não existe espaço privado, que todo espaço é público. Esse espírito agressivo está ligado à inversão dessa lógica, à tentativa de transformar a cidade em guetos privados?
PMR: Você já viu isso? Será que me repito muito? Por isso fico preocupado em dar entrevistas. Mas, sim, não há espaço privado. A arquitetura constrói espaços para amparar a imprevisibilidade da vida, não para determinar comportamentos. A cidade é o lugar da liberdade. Você não pode constranger as pessoas no espaço público com dificuldades. Caso contrário, elas desenvolvem a consciência de espaço no espaço imaginado dentro de si, num individualismo atroz.
CC: O que são os prédios que oferecem tudo, de piscina de 25 metros a churrasqueira, que vendem uma idéia de exclusividade?
PMR: É o desvio do conceito de urbanismo. Mas, como você vê, a própria piscina será pública, não de um morador só. Vou falar uma coisa indevida. Imagine uma mãe: quando o filho dela vai para a escola, ele é público. A saúde é uma dimensão pública. O conhecimento é uma dimensão essencial da nossa privacidade enquanto público. Mas estou falando de coisas para filósofo. Deixe exemplificar isso na arquitetura. A casa, enquanto coisa, é da cidade, não é de fulano ou beltrano. Ela se transforma conforme quem compra, vende, aluga. Imagine a crônica do Copan. Quanta gente morou numa casa projetada pelo Niemeyer? O resultado do nosso trabalho é eminentemente público. A água que sai da torneira é pública e está sob responsabilidade de gente que não conhecemos. O pilar do prédio é público: se o morador tira a viga, ele cai. Apesar disso, estamos alienando a consciência sobre nosso estado no universo. Por isso, insisto, as decisões sobre as construções, e nesse sentido a arquitetura, são ações políticas.
CC: Os arquitetos também perderam a dimensão do público?
PMR: Tenho a obrigação de dizer que não. Temos de ter confiança no futuro.
CC: Seu colega Jorge Wilheim perguntou, num texto, quantos arquitetos diriam não para um projeto de edifício neoclássico, tão em voga em São Paulo. Quantos diriam?
PMR: Todos diriam não. Mas, conformistas, vão e fazem. Pense no nazismo e no fascismo. Não aderiram todos? O mercado é um horizonte falso e, se ficar no comando do processo, só produzirá asneiras como a dos neoclássicos. Isso é um engodo de quem precisa continuar com o negócio.
CC: A classe média passou a gostar disso de fato ou, simplesmente, não tem mais gosto?
PMR: A classe média alta é a classe mais baixa da população. Ela está tão desesperada que corre atrás de qualquer coisa que se diga. Como ela é totalmente conformista desfrutante, a propaganda diz o que ela deve dizer e ela diz. O método de produzir a decadência para depois corrigir, a idéia do “quanto pior melhor”, é elaborado pela classe dominante. Aí você chega a um limite em que só a guilhotina resolve. Ninguém agüenta meia de seda, renda de florzinha, cabeleira postiça... Eles mesmos se matam. Mas vamos corrigir as palavras. A classe dominante, no Brasil, é a mais pobre. A exigência maior de uma cidade como São Paulo é habitação, transporte e saúde.
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