terça-feira, 2 de outubro de 2007

Geddel comanda desmonte do carlismo

Paulo Totti para Valor

Ruy Baron/Valor


Às 10h00 de segunda-feira nos sofás da sala de estar de um apartamento em ensolarado edifício do bairro de Ondina, 14 pessoas esperam a oportunidade de trocar algumas palavras com o ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima (PMDB). Ao meio-dia, já serão mais de 20 os visitantes. Comissões de prefeitos, vereadores, deputados estaduais conversam com Geddel na sala de jantar, paredes nuas e sem luxo, com uma mesa em condições de assentar mais de dez pessoas. Os encontros individuais ocorrem num gabinete ao lado, mais exíguo e também despido de ornamentos. "O ministro hoje teve que transferir alguns encontros para a própria casa porque havia muita gente querendo falar com ele. Não sei o que vai acontecer com os que estão lá na sede da Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), onde o ministro costuma despachar todas as segundas", diz uma assessora. "No sábado e no domingo ele vai para o interior e na segunda o interior todo parece que vem para cá. É a nossa rotina".


Tanta atividade não é exclusiva do ministro. Com a agenda sobrecarregada na terça-feira, o governador Jaques Wagner (PT), por exemplo, só começou às 13h30 uma audiência marcada para as 11h. Quatro pessoas ainda aguardavam na ante-sala e, ao lado do gabinete, às 14h30, a mesa do almoço continuava posta à espera do governador e dois convidados. O prefeito João Henrique Carneiro (ex-PDT, hoje PMDB), na mesma tarde, depois de uma circulada pelo centro da cidade para "fiscalizar o comércio" (e fechar uma agência do Real ABN Amro, por irregularidades num alvará), foi receber vereadores na prefeitura, ao lado do Elevador Lacerda, e correu ao gabinete de despachos do governador, no Centro Administrativo estadual, para a assinatura de um contrato com a Infraero destinado à construção de viadutos que facilitarão o acesso ao aeroporto Luís Eduardo Magalhães.

A primeira-dama, Fátima e Jaques Wagner, governador da Bahia


Do outro lado de Salvador, no escritório de um conjunto conhecido como As Torres Gêmeas, na avenida Tancredo Neves, o ex-governador Paulo Souto (DEM) acabava de voltar, quarta-feira, do velório da mulher de um prefeito do interior, recebia um outro prefeito, dava entrevista pelo telefone à Rádio Metrópole e aguardava a chegada de uma equipe da TV Bahia.


Em Brasília, na sexta-feira, o senador César Borges (ex-PFL, ex-DEM, e, a partir desse dia, oficialmente no PR), saía do gabinete do ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento (vice-presidente do PR), e ia direto para o aeroporto, para um fim de semana em suas bases na região de Jequié, onde o sertão começa a 360 quilômetros de Salvador. Na manhã do mesmo dia, no bairro da Pituba, as escadas que levam ao terceiro andar, e também os corredores e as quatro pequenas salas do modesto escritório de Antonio Carlos Magalhães Neto (DEM), estão tomadas por correligionários (é sexta-feira e três deles vestem-se de branco, da gravata aos sapatos). O deputado chega sem seguranças, cumprimenta cada um, despacha com alguns deles no próprio corredor, reúne-se individualmente num gabinete apertado com meia dúzia de outros, e sai para uma participação ao vivo na TV Bahia. Aos 28 anos, casado, ACM Neto tem pouco tempo para a filha de sete meses, Lívia, para jantar fora, ir ao cinema, fazer com a mulher um programa de jovens. Sábado e domingo terá novos compromissos, obviamente políticos, com agenda não revelada.


Na plácida Bahia, todos os expoentes da política demonstram excepcional disposição para o trabalho nestes dias que antecedem o 5 de outubro, data limite para a troca de partido dos que pretendem concorrer por outra legenda às eleições municipais de 2008. No país inteiro, há movimentação e expectativas. Mas, na Bahia, a situação é diferente e especial. Pela primeira vez, desde os anos 60 do século passado, Antonio Carlos Magalhães não está presente, não disputa, não decide, não influi pessoalmente (pró ou contra) numa eleição. E sem ACM, o avô, como ficam os prefeitos, acostumados com o alinhamento automático ao poder estadual e, por meio dele, ao poder federal, um disciplinado verticalismo que lhes assegurava não só a eleição, mas os favores no exercício do mandato que os levaria à própria reeleição ou à sobrevivência de seu grupo?


Nenhum dos grandes próceres da Bahia disputará eleições municipais, mas o cacife de cada um no jogo do poder estadual começará a ser calculado pelo número de fichas de filiação de prefeitos e vereadores que empilhar no seu estoque partidário a partir de sexta-feira.


Em 2004, dos 417 municípios da Bahia, 370 elegeram prefeitos do então PFL ou de partidos perfilados com Antonio Carlos. PMDB e PSDB elegeram perto de 40 e o PT saltou de 7 para 19. O PDT fez o prefeito de Salvador, com 75% dos votos. Nas duas cidades do interior mais populosas, o PFL tem o prefeito reeleito de Feira de Santana e o PT, o prefeito de Vitória da Conquista. Nos maiores colégios eleitorais do Estado, à exceção de Salvador, os carlistas elegeram cinco prefeitos, o PT quatro e o PMDB, um. Muitos dos prefeitos, num êxodo a que se juntaram vereadores, deputados estaduais e federais, abandonaram o DEM já na derrota para Jaques Wagner em 2006, mas a restruturação completa do quadro partidário ocorrerá somente agora, quando se saberá se e como, morto Antonio Carlos, sobreviverá o carlismo.

Adesões

Nenhum dos próceres ouvidos pelo Valor arriscou previsão sobre o placar final dessa corrida por adesões. A exceção foi o ministro Geddel Vieira Lima, presidente de honra do PMDB na Bahia (o irmão, Lúcio, é o presidente da executiva regional). "O carlismo é hoje uma Ong em desagregação", disse Geddel, referindo-se não só às derrotas sofridas pelo PFL, em 2004 nas eleições para prefeito em Salvador e em 2006 para o Senado e o governo do Estado, como à crise que sucedeu à mudança do nome do partido para Democratas e culminou com a saída do senador e ex-governador carlista César Borges para o PR. Às vésperas do encerramento do prazo de filiações, Geddel contabiliza como certa a adesão de 70 prefeitos ao PMDB e esperava chegar a 100, "ou perto disso". Jaques Wagner diz que a corrente que ACM chefiou continua forte eleitoralmente e, apesar de fragmentada, merece respeito. "Minha vitória em 2006 foi no primeiro turno e com folga. Mesmo assim, a diferença foi de cinco pontos (52,5% a 47,5%). Isso é pouco para considerar que o adversário desapareceu".


Paulo Souto e Antonio Carlos Magalhães Neto reconhecem que sua corrente perdeu substância. A derrota de 2006 é atribuída por ambos à "avalanche lulista" que soterrou a oposição em todo o Nordeste e, diz Paulo Souto, "a uma certa fadiga de material. Depois de 16 anos ininterruptos, o eleitor quis experimentar uma mudança". A atual debandada é vista como resultado natural da necessidade de aproximação com o poder. "Fomos beneficiários disso durante muito tempo", diz Paulo Souto, pragmática e sinceramente. Dois dias depois, ACM Neto faria o mesmo raciocínio. Numa comprovação de que o carlismo sempre teve bons analistas do contexto político da Bahia, um assessor do jovem ACM simplifica numa frase a situação atual de sua corrente: "Estamos sendo picados pelo nosso próprio veneno".

Antonio Carlos Magalhães
Geddel Vieira Lima, que testemunhou de perto a prática política de Antonio Carlos Magalhães - foi seu inimigo pessoal por mais de dez anos e, atraído por Luís Eduardo, se tornou próximo ao final da década de 90, para ser novamente inimigo após a morte do filho do então senador - faz uma longa descrição do que consideraria o "veneno" de ACM.


Estamos sendo picados pelo nosso próprio veneno, É natural. Nos beneficiamos disso durante muito tempo"


Diz Geddel: "ACM cresceu na ditadura, uma época em que o governador era nomeado em agosto e a eleição geral era em outubro. Então, prefeitos, deputados, todos queriam o apoio do governador para eleger-se, manter-se no poder e evitar cassações. ACM fortaleceu-se regional e nacionalmente com a nomeação em rodízio de subservientes e a perseguição aos adversários. Na redemocratização, aproximou-se de todos os presidentes. No primeiro mandato de Fernando Henrique reuniu mais poder até do que na ditadura. Brigou com FHC mas manteve o controle de todos os cargos federais que nomeara. Houve esperança de modernização quando o filho começou a aconselhá-lo. Mas Luís Eduardo morreu. Depois, houve os dois escândalos de grampos, um na Bahia em episódio pessoal que a imprensa explorou bastante e o outro em Brasília no caso do painel do Senado. A herança de ACM não exibe um chefe político formado, árvore para abrigo na intempérie. É natural que os políticos procurem esse abrigo em outras paragens".


A movimentação de Geddel indica que pretende acolher a orfandade à sombra de sua autoridade de ministro e de "chefe de partido" aliado dos governos federal e estadual. O ministro parece gostar da expressão "chefe de partido". Usou-a três vezes em seu contato com o Valor. Perguntado se tentou atrair César Borges para o PMDB, Geddel respondeu: "Não o procurei. Ele incorpora todos os defeitos do carlismo. Morto o dono do estilo, eu não iria chamar para o PMDB quem quer preservar esse estilo."


César Borges, que sai do DEM por não concordar com o controle da legenda pelo ex-governador Paulo Souto, acabou no PR e recebeu do presidente de honra do partido, o governador do Mato Grosso, Blairo Maggi, e do vice-presidente Alfredo Nascimento, uma carta atribuindo-lhe "o irrestrito comando sobre os destinos do PR na Estado da Bahia", o que representa a deposição do atual presidente, deputado federal José Carlos Araújo. Jaques Wagner disse ao Valor que não teve interferência no ingresso de Borges na base de apoio ao governo federal -"isso é coisa de Brasília" - mas, para evitar surpresas, apressou a cerimônia de adesão da bancada estadual do PR à sua própria base de apoio (três deputados hoje e mais três que virão nos próximos dias). Em Brasília, Borges disse que pretende chegar ao PR baiano "com uma bandeira branca" e que não se recusa a dialogar com Wagner, se convidado. Sobre a adesão a um partido da base federal, Borges disse que continua contra a CPMF, mas, no Senado, trabalhará para um acordo entre governo e oposição sobre o tema.


Apesar da ausência de previsões que reflitam a realidade e não os desejos, o PMDB baiano é o partido com a maioria das adesões pré-5 de outubro (na prática, o prazo para o recrutamento se esgota amanhã, pois dois dias serão gastos na tramitação da nova filiação na Justiça Eleitoral). A adesão mais visível foi a do prefeito de Salvador, João Henrique, ao PMDB no mês passado. O pai do prefeito, ex-governador João Durval Carneiro (ACM indicou-o candidato do PDS em 1982 para substituir Clériston Andrade, morto num acidente de helicóptero em plena campanha) derrotou Rodolpho Tourinho (PFL) em 2006 e elegeu-se senador pelo PDT. O PMDB é o mais forte aliado do governador Jaques Wagner. Geddel indicou o vice, ex-deputado estadual João Pereira, e tem várias secretarias no Estado e na prefeitura. Na atração dos "órfãos", o PT segue a orientação nacional, recusa adesões "não ideológicas" e isso facilita o inchaço dos outros partidos que apóiam o governador. Com seu estilo calmo e muita articulação nos bastidores, preferindo usar a palavra "liderança" à "chefia" ou "comando", tão ao gosto dos políticos mais tradicionais da Bahia, Wagner conseguiu vitória em todas as votações importantes na Assembléia. Na semana passada, eram 38 deputados num total de 63, e com a atração mais recente de deputados do PR e outras aproximações, sua maioria pode chegar a 46, quatro cadeiras a mais do que o carlismo dispunha na legislatura passada. ACM Neto inclui o PSDB, do deputado federal Jutahy Magalhães e do ex-prefeito Antônio Imbassahy, na "linha auxiliar " de Wagner. O presidente da Assembléia, com efeito, é do PSDB e facilita a tramitação dos assuntos de interesse do governador.


Aos 48 anos, casado, duas filhas, Juliana, 8, e Mariana, 4, Geddel diz que não quer ser governador em 2010. "Leitor de Ortega y Gasset, sou eu e minhas circunstâncias. Respeito a fila. Jaques tem a preferência. Se quiser ser reeleito, eu o apóio e me candidato ao Senado. O pacto com Jaques será respeitado. Jaques me apoiou para o ministério de Lula e se ele for candidato a presidente em 2010, ou a vice, destaco, pode contar comigo".


O ingresso do prefeito no PMDB foi, segundo Geddel, "pactuado" com Jaques Wagner, que prometeu apoio a João Henrique para a reeleição em 2008, uma decisão incômoda para as bases do PT de Salvador, que pretendiam mais uma vez lançar a candidatura do deputado federal Nélson Pellegrino. "O ciúme existe", diz Geddel, "mas Jaques e eu somos políticos sensatos".


O carlismo está disposto a explorar o provável ressentimento do PT e de outros partidos da base de Wagner com o crescimento de Geddel. "Geddel pode criar problemas ao Jaques. A coabitação com o PMDB não é uma coisa boa", diz Souto. "O culpado é o próprio PT, que deu tantas asas ao Geddel", diz, por sua vez, César Borges, que, segundo amigos e inimigos, sai do carlismo mas continua carlista.


Um sinal de que PMDB e PT não estão tão afinados é o que ocorre neste momento com a escolha de um novo membro do Tribunal de Contas do Estado, em vaga tradicionalmente preenchida por um indicado pela Assembléia. A bancada do PT tem candidato, Zilton Rocha, e o PMDB resolveu indicar o pai de seu líder na Assembléia, nada menos do que Leur Lomanto, recém-saído da desprestigiada diretoria da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac). "Foi uma decisão da bancada. Não poderia vir de Brasília e emasculá-la", diz Geddel.


Alan Rodrigues

• Paulo Souto, ex-governador


Com esse quadro, o que faz o DEM para garantir a sobrevivência? Paulo Souto e ACM Neto fazem a mesma análise do passado e pensam igual sobre o futuro. O deputado considera que, "no sistema eleitoral brasileiro", as chefias locais dependem muito do poder estadual ou do poder federal. "Perdemos os dois. O eleitor nos tirou do poder e só ele pode nos colocar de volta", Por isso, o DEM, com os poucos aliados que lhe sobrarem, pretende falar diretamente ao eleitor. A defesa da redução dos impostos, adotada nacionalmente, será um dos instrumentos desse contato. "Em 2006 tínhamos apoio de 380 prefeitos, 42 dos 63 deputados estaduais, 25 dos 39 deputados federais e, mesmo assim, perdemos", contabiliza ACM Neto. Já as lideranças intermediárias, diz, são atraídas de duas formas: pelo exercício do poder ou pela expectativa de poder. "Perdemos a primeira, mas podemos ser a segunda". A Prefeitura de Salvador pode ser o início do caminho de volta. Para Souto, as chances de vitória na capital são boas, devido principalmente "ao desempenho fraco do atual prefeito". Neto acrescenta que em pesquisa da Qualy, uma empresa baiana, os que consideram ruim ou péssima a administração de João Henrique são o dobro dos que lhe atribuem nota boa ou ótima. Segundo a pesquisa, ACM Neto tem 15% das preferências para prefeito. "Mas só vou decidir lá por dezembro", afirma. Na eleição para a Câmara, Neto teve na capital 107 mil votos de um total de 437 mil. Sobre alianças, diz ele que César Borges se comprometeu a apoiá-lo. Pelo telefone, de Brasília, César Borges afirmou que não se lembra da promessa.

ROBERTO CASTRO/AG. ISTOÉ

Souto e ACM Neto poupam até aqui o governo de Jaques Wagner, mas destacam que a violência aumentou na capital e na região metropolitana. Assessores de Wagner dizem que os dados sobre criminalidade no governo de Souto eram manipulados. "É criminoso dizer isso", responde Souto. "Mas mesmo os números do atual governo mostram que a violência aumenta a cada mês". Perguntado se confirma a fama de que o carlismo, apesar de tudo, era um primor de gestão, Wagner responde: "Montaram uma boa máquina arrecadadora. Mas no restante, especialmente na área social, o desempenho foi muito fraco". Ao assumir, Wagner revelou a herança de uma dívida de R$ 400 milhões. Uma auditoria mais profunda, diz sua assessoria, indicou o comprometimento do orçamento de 2007 em R$ 1 bilhão. A Bahia, na atual gestão, foi um dos poucos Estados do Nordeste que não teve problemas em seus hospitais. "Isso ocorreu porque entreguei a Saúde em bom estado", diz Souto.


O cientista político Paulo Fábio Dantas Neto, diretor do Centro de Recursos Humanos da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal da Bahia, é o mais conhecido estudioso do fenômeno que ele próprio passou a chamar de carlismo. Crítico severo (e documentado) do carlismo e simpático ao PT, Paulo Fábio não acha que o carlismo desapareceu: "Perdeu substância nos últimos anos, mas nunca passou mesmo de 30%". A volta do carlismo ao poder seria um retrocesso, mas ele revela um temor maior: o de que Jaques Wagner, empolgado com o sucesso, "desmanche seu projeto de governo em nome da unanimidade, a Bahia una sob seu comando". Diz o professor: "Tornar-se o coveiro do carlismo é até possível, mas isso só será conseguido se recorrer aos mesmos métodos do carlismo. Ter oposição é bom para a democracia. Jaques tem que afastar de si esse cálice".

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