Livro didático: não coma gato por lebre
O artigo a seguir, do deputado Rui Falcão, denuncia uma curiosa coincidência entre tucanos, editorialista do O Globo e editora espanhola visando o suculento negocio dos livros didáticos no Brasil. Vale a pena ler na integra.
O livro didático, sob o risco da desnacionalização
por Rui Falcão
A denúncia de doutrinação ideológica em livro didático distribuído pelo MEC, feita pelo diretor de jornalismo da TV Globo, Ali Kamel, parece ter trazido a público muito mais do que pretendia o autor. Ao fazer emergir o jogo bruto de interesses financeiros em que se digladiam as grandes editoras pelo controle do mercado nacional de livros didáticos, Ali Kamel presta um desserviço à causa da oposição ao governo Lula, que é também a sua, levantando inadvertidamente a ponta do véu que encobre a promiscuidade entre gente tucana e o capital estrangeiro, pela desnacionalização do setor.
Como se recorda, em artigo publicado no jornal O Globo – depois reproduzido por outros jornais – Ali Kamel condena a coleção didática Nova História Crítica, de Mário Schmidt, por contrabando ideológico nas escolas públicas. No artigo, também insinua que o MEC incentiva a adoção da obra. Dá assim testemunho público de sua ignorância no tema, por desconhecer que livros didáticos da escola pública são antes avaliados por especialistas, em sistema de rodízio, organizados em comissões independentes, constituídas por departamentos das universidades públicas, sem interferência alguma do governo, para serem, depois, escolhidos livremente pelos professores. O MEC limita-se a reunir tais avaliações, imprimi-las e distribuí-las aos professores, sob a forma de Guia do Livro Didático, como contribuição para facilitar o trabalho de seleção. Lembre-se de que a escolha do livro didático é prerrogativa inalienável dos professores.
Não é o caso aqui de entrar na polêmica sobre o conteúdo do livro - amplificada pela grande mídia em razão de seu suposto potencial de mobilização contra o governo Lula -, pois é sabido que o Brasil conta com um dos melhores sistemas de avaliação de livros didáticos do mundo, sistema criticado pelas grandes editoras quando de sua adoção em 1996, pelo risco de "controle ideológico" , segundo lembra Maria Encarnação Beltrão Sposito, professora de Geografia da Universidade Estadual Paulista e avaliadora do Programa Nacional do Livro Didático.
Mas não é apenas a desculpa do controle ideológico que leva parte das editoras a se insurgir contra o controle de qualidade sobre o livro didático, exercido pelo sistema de ensino público, sob o patrocínio do MEC. A liberdade atual de que desfruta o mercado de livros didáticos não convém às grandes editoras, constituídas em oligopólio multinacional. Estas não se conformam com o processo independente e democrático de avaliação e de seleção que há cerca de uma década e meia passou a presidir às compras do MEC. O seu caráter descentralizado, envolvendo dezenas de instituições públicas de ensino superior, distribuídas por todo o País, e dezenas de milhares de professores, já não permite a investida sorrateira e centralizada do lobby junto às autoridades de Brasília pela conquista do butim, como ocorreu durante décadas no passado.
Isso não quer dizer que a política de livros didáticos se tenha libertado inteiramente da influência mercenária exercida historicamente pelas grandes editoras: a cada três anos, o governo brasileiro volta ao mercado para a compra de novos livros, enquanto nos EUA, por exemplo, as compras ocorrem somente a cada dez. Lá, além do conteúdo, também o manuseio e a conservação do livro, por parte dos alunos, servem a propósitos pedagógicos: ensinam sobre a necessidade de se gastar bem o dinheiro público na sua compra. Por isso, depois de utilizados, os livros são passados adiante, para os alunos entrantes, enquanto no Brasil são considerados descartáveis, para propiciar o retorno amiúde do governo ao mercado, para novas compras.
São tais características, entre outras, que fazem do mercado brasileiro do livro didático uma nova China do mundo editorial - o mais cobiçado dentre todos, e por ser também o maior do mundo. O Programa Nacional do Livro Didático-PNLD conta em 2007 com orçamento de R$ 620 milhões - uma cifra vultosa, mas justificável como investimento que faz chegar a 30 milhões de alunos de escolas públicas, de graça, 120 milhões de exemplares. Trata-se de um mercado que cresce a 20% ao ano, o dobro da média do mercado editorial – didáticos e não didáticos.
É sobre esse pano de fundo que se deve analisar a investida de Kamel contra uma coleção didática, de grande sucesso de vendas, segundo a estimativa do mercado. No que pareceu ser uma ação orquestrada, segundo o acúmulo de evidências, enquanto Kamel disparava o seu ataque numa página de O Globo, o jornal espanhol El País estampava no dia seguinte em sua manchete (19/09/2007): "Brasil entrega a 750.000 estudiantes un polémico manual de historia" "El libro de texto ensalza el comunismo y la revolución cultural china". Ao mesmo tempo, o ex-ministro da Educação, o deputado federal Paulo Renato de Souza (PSDB-SP) - durante cuja gestão o "livro comunista" havia sido incluído no rol dos recomendados no Guia do Livro Didático, do MEC -, cuidava de divulgar as denúncias no site de seu partido, além de criticar à imprensa um suposto relaxamento do atual governo na defesa dos critérios de independência e neutralidade adotados pelo MEC.
Por mais estranho que possa parecer o zelo pressuroso de um jornal espanhol para com a boa educação das crianças brasileiras, difícil é assumir como a mais plausível a hipótese de casualidade na coincidência entre os fatos. Com certeza, El Pais não visava, com a divulgação do "escândalo", levar coisa nova para o seu leitor vinda do Brasil: não é de hoje que se contam às centenas os livros desaconselhados pelos especialistas a serviço do MEC – e está longe de ser a primeira vez que o MEC intervém para desautorizar a sua utilização no ensino público.
Ocorre que El País é propriedade da empresa Santillana, que controla a editora Moderna – uma das que mais interesse tem no mercado brasileiro de livro didático, um mercado concentrado em mãos de umas poucas grandes editoras, dentre as quais a espanhola. Ocorre também que a Santillana conta em seu corpo de consultores com o ex-ministro da Educação, Paulo Renato de Souza, um dos responsáveis na gestão FHC pela decisão de estender a todos os estudantes da primeira à quarta séries o acesso gratuito aos livros didáticos de Português, História e Geografia, Ciências e Matemática – decisão que viria a converter o governo federal no maior comprador de livros didáticos, e o mercado brasileiro, no maior do mundo, como deve ter previsto o ex-ministro da Educação, antes de se incorporar às hostes da Santillana.
Além de contratar o ex-ministro tucano da Educação, a Santillana soube fortalecer a promiscuidade, assim constituída, entre os seus interesses e o de ex-membros do governo FHC, ao contratar também Mônica Messenberg, braço direito de Paulo Renato de Souza no MEC na condição de executiva responsável pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Nos dias seguintes à sua saída do MEC, sem respeitar o período ético e legal da quarentena, Mossenberg passou a ocupar alto cargo executivo no conglomerado Santillana, como diretora de assuntos institucionais (leia-se: lobby junto a governos, secretarias estaduais e municipais de Educação) da editora Moderna.
Acrescente-se ao rol de coincidências o fato de a Geração Editorial, responsável pela produção da Nova História Crítica, ser uma das poucas editoras de porte ainda em mãos do capital nacional.
A escaramuça da Santillana contra o concorrente nacional é apenas mais um lance na disputa pelo controle do mercado, da qual participam também outras empresas multinacionais e fundos de investimentos norte-americanos. A desnacionalização da produção do livro didático, mediante colaboração tucana - e o risco assim posto à autonomia e à soberania nacional -, é também apenas um dos muitos desafios que deveriam constar do debate sobre a responsabilidade do Estado na definição de uma política pública do livro didático, que o governo Lula e o meu partido estão a dever à nação.
Durante muitos anos, a produção de livros didáticos foi conduzida em primeira pessoa pela iniciativa privada, sem a participação do governo, que se limitava a sancioná-la em suas compras, produção sem compromisso com critérios de qualidade educacional e com a adequada informação científica. As escolhas feitas pelo Ministério da Educação não assentavam sobre parâmetros e critérios objetivos e transparentes, deixando caminho aberto ao tráfico de influência e à livre pressão das grandes editoras, em geral associadas a políticos e cujo número não passava historicamente de meia dúzia.
Um tal faroeste - que bem poderia simbolizar o ideal liberal do livre mercado -, encontrou o começo de seu fim na discussão nacional do documento "Definição de Critérios para Avaliação dos Livros Didáticos", publicado em 1994 pelo MEC, em parceira com a Fundação de Assistência ao Estudante e com a Unesco. Seminários e reuniões, realizados a seguir, trouxeram subsídios para a definição dos novos critérios de avaliação. Encerrada a fase de discussão, foi constituída uma equipe de professores, para realizar a análise dos livros. Cada publicação passou a ser avaliada por dois docentes. Se um parecer era contrário ao outro, o livro era submetido à avaliação de um terceiro especialista. Publicações como as de Ciências, das quais fazem parte conhecimentos de diferentes áreas (biologia, astronomia, física etc.), chegaram a ser analisadas até por oito professores. Assim se deu início ao processo de avaliação independente e democrática dos livros didáticos no Brasil, atualmente materializada nos Guias do Livro Didático, distribuídos pelo MEC. Foi um grande passo na construção de uma política do livro didático. Falta muito, porém.
A mais recente ameaça ao processo independente e democrático de seleção e escolha do livro didático, sob a coordenação do MEC, surge de grupos educacionais - empresas que exploram a educação privada e que ingressam agora também no setor público, mediante a venda de material didático diretamente às prefeituras, para ser distribuído aos alunos nas escolas. Trata-se de um conluio entre prefeitos e grupos educacionais, que tem por objetivo neutralizar e reverter na prática as diretrizes e normas sobre o livro didático estabelecidas pelo MEC, trazendo de volta o tráfico de influência, a ausência de controle de qualidade e eventual corrupção no processo de compra.
Como expediente para escapar ao controle do MEC, prefeitos e empresas entendem-se diretamente na negociação de "apostilas" e "material pedagógico" - eufemismos utilizados para dispensar o governo federal de prover às escolas do município os livros didáticos avaliados pelos especialistas. Para as prefeituras, a compra desse material representa um custo adicional para o orçamento municipal, já que o MEC distribui gratuitamente livros para o ensino fundamental. O argumento utilizado pelos prefeitos para justificar a realização do negócio diretamente junto às editoras é que o material didático adquirido representa um "diferencial de qualidade". Segundo informações divulgadas pela imprensa, o negócio do "diferencial de qualidade" entre prefeitos e grandes editoras tem-se revelado como um dos mais rentáveis e auspiciosos, apresentando resultados financeiros que, a cada ano, chegam a 50% acima dos do ano anterior. Assim, entra pela porta dos fundos o que o MEC nos últimos anos havia conseguido expelir pela porta da frente.
São elementos suficientes para justificar a necessidade de se promover um debate nacional sobre o papel do Estado na definição de uma política nacional do livro didático.
Rui Falcão, 63 anos, advogado e jornalista, é deputado estadual pelo PT. Foi deputado federal, presidente do PT e secretário do Governo da prefeita Marta Suplicy.
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