domingo, 14 de outubro de 2007

Jogo dos incluídos

DESEJOS COBIÇADOS PELA PARCERIA CALHEIROS/VELOSO E PELA SIMETRIA HUCK/ASSALTANTES PERDERAM SUA SINGULARIDADE E CAÍRAM NA VALA COMUM DAS BANALIDADES


ELIANE ROBERT MORAES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há alguma simetria entre os protagonistas das duas notícias que mobilizaram a imprensa brasileira nas últimas semanas.
De um lado, o casal Renan Calheiros e Mônica Veloso, que vem disputando a atenção dos leitores com o escandaloso thriller no qual sexo e política se fundem em prol da corrupção. De outro, o embate entre o apresentador Luciano Huck e dois ladrões de rua, que vem semeando dúvidas sobre quem é o mocinho e quem é o bandido da história.
Aparentemente, o que aproxima todos esses personagens é a disputa por um objeto do desejo. No caso dos assaltantes de Huck, por estar no pulso de um "bacana", mais que um relógio, o objeto em questão aparece como um equivalente geral que pode dar acesso a outros objetos, cuja demanda pode ser motivada tanto pela necessidade quanto pelo desejo.

Crack ou remédios?
Armas ou alimentos? Pedras de crack ou remédios? Tênis de grife ou aluguel de barraco? Não se sabe, pois aos que estão à margem do tecido social não é dada a oportunidade de se manifestar.
No caso do famoso apresentador, o objeto também parece ser mais que um simples relógio, já que se trata de um caríssimo Rolex. Presente de sua mulher, a igualmente famosa apresentadora global Angélica, um relógio desse calibre é sinal de prestígio, indicando um lugar social que, no Brasil, costuma "abrir portas" raras vezes franqueadas à maior parte da população.
Como não recordar, por exemplo, que Luciano Huck é proprietário de uma pousada cinematográfica num parque nacional como Fernando de Noronha, cuja legislação é tão restrita para a hotelaria?
Mais afinado com as tradições patriarcais de seu Estado natal, Renan aparece nos noticiários por conta de um objeto tradicional, bem de acordo com a chamada "preferência nacional" dos anúncios de cerveja.
Escolha por certo incentivada pelo reconhecimento de que, desde a época dos coronéis, os velhos políticos gozam junto ao público machista quando exibem seus casos extraconjugais.
Ora, em perfeita simetria com o desejo do senador alagoano, Mônica Veloso também parece desejar exatamente o que Renan podia lhe dar, a saber: dinheiro no bolso e um lugar ao sol no mundo das celebridades.
Daí que não seja possível, em ambos os episódios, associar os casos em questão àquele "obscuro objeto do desejo" que dá título a um dos mais instigantes filmes de Luís Buñuel. Tratava-se, para o cineasta, de mostrar como um desejo singular, único, podia engendrar um objeto de grande opacidade.
Em direção oposta, tanto na parceria Calheiros/Veloso quanto no confronto Huck/assaltantes, há uma espécie de exibição ostensiva dos objetos em jogo, como que marcando a coincidência de desejos que perderam sua singularidade para cair na vala comum das banalidades.
Nascidos um para o outro, Renan Calheiros e Mônica Veloso formam um par perfeito. Político experiente, o senador de Alagoas não poupou manobras para conseguir a presidência da casa.
Da mesma forma, Mônica mostrou-se ambiciosa o bastante para desistir da volumosa pensão alimentícia de R$ 12 mil -fora o aluguel no valor de R$ 4.500- para sair da sombra do senador e conquistar um espaço próprio, não sem antes mostrar seus dotes na habitual sessão de fotos para uma revista "masculina".

As duas mônicas
Com efeito, comparada a ela, talvez a colega americana Monica Lewinsky não passe mesmo de uma estagiária. Ora, o que chama a atenção, em todo esse processo, é o insistente desejo de exposição.
Figurinha carimbada, Renan faz questão de tornar públicas as ameaças aos adversários e aliados, visando a salvar sua pele mais uma vez. Enquanto isso, a Mônica tupiniquim faz de tudo para conseguir o almejado emprego como apresentadora, não poupando esforços de qualquer ordem.
Assim também, as reiteradas manifestações de Luciano Huck desde a ocorrência do assalto não fazem outra coisa senão reforçar seu espaço, já nada desprezível, na mídia.
Nessa economia, ser sujeito significa antes de tudo ser visto.
Ganha quem consegue aparecer. Perde quem fica fora do jogo. Já não é possível estabelecer nenhuma simetria entre os pólos das duas histórias. Diante das ostensivas figuras de Renan, Mônica e Huck, os dois anônimos assaltantes sem nome nem voz próprios não podem mesmo ser outra coisa senão excluídos.


ELIANE ROBERT MORAES é professora de estética e literatura na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP) e no Centro Universitário Senac-SP. É autora de "Lições de Sade" (Iluminuras), entre outros livros.

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