Constituinte exclusiva para a reforma política
Rui Falcão*
Está de volta a proposta de uma Assembléia Nacional Revisora da Constituição, formada por representantes do povo e constituída exclusivamente para essa finalidade. É o que deverá discutir o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil em sua sessão plenária dos dias 3 e 4 de setembro, numa iniciativa que vem juntar-se a outras, promovidas por outras entidades e que ganha impulso agora, ante o fracasso previsível da proposta de reforma política de que se ocupou o Congresso Nacional no primeiro semestre.
A Constituinte exclusiva para a reforma política vinha sendo debatida anteriormente pelo Partido dos Trabalhadores em seus encontros, e tudo indica que deverá constar das resoluções de seu 3º Congresso, a realizar-se no fim de agosto, ecoando manifestação do então candidato à reeleição, Luis Inácio Lula da Silva, em entrevista ao SBT, em 2 de agosto de 2006. Dizia Lula, na ocasião, estar “convencido de que nós precisamos começar a discutir a reforma política assim que terminar a eleição; e, se houver a possibilidade de a sociedade reivindicar uma constituinte - com parlamentares eleitos exclusivamente para isso -, ao presidente da República, pode ficar certo que encaminharei ao Congresso”.
Como justificativa para a convocação da Constituinte exclusiva, Lula afirmava ter dúvidas sobre a vontade do Congresso Nacional de aprovar uma reforma política que satisfaça à sociedade. “Porque, no momento, o Congresso pode votar uma reforma política que atenda aos interesses do próprio Congresso”, acrescentou, numa afirmação premonitória do que viria a ocorrer na atual Legislatura. Os demais candidatos à Presidência opuseram-se à proposta, e houve quem dentre estes enxergasse na idéia uma manobra “chavista”, de instauração de um regime autocrático por via constitucional.
Na realidade, como afirma o jurista Fábio Comparato, a Assembléia Revisora impõe-se pela necessidade de ampla e profunda reforma política no País, “como pressuposto incontornável para o cumprimento dos objetivos fundamentais do Estado republicano, declarados no artigo 3° da Constituição Federal”. A revisão na Constituição, segundo Comparato - o autor da proposta a ser debatida pela OAB -, é fundamental para se quebrar “o monopólio que se arroga o Congresso Nacional para reformar a Constituição por meio de emendas”. Pela proposta, seria fixado um prazo improrrogável de funcionamento da Assembléia, cujas decisões serão obrigatoriamente submetidas a referendo popular.
São vários os temas de fundamental importância para o aperfeiçoamento das instituições democráticas brasileiras que foram deixados de lado na proposta de reforma levada ao plenário da Câmara dos Deputados no primeiro semestre, em geral pela incapacidade e falta de vontade política de muitos congressistas de cortar na própria carne. Uma reforma política que vise a reduzir a distância que separa Estado e Sociedade e a responder ao anseio popular da participação democrática não pode deixar de retomar a discussão desses temas – e isso somente será possível, no atual cenário, mediante a convocação de uma Constituinte exclusiva.
Pense-se, por exemplo, na questão do papel revisor do Senado, um problema que, a despeito de sua relevância – por agravar ainda mais a distorção no sistema de representação, entre outras distorções - não mereceu atenção alguma no projeto de reforma que vinha sendo discutido na Câmara.
A Constituição Federal determina que o projeto-de-lei iniciado em uma das casas do Congresso Nacional deverá ser revisto pela outra – o que, por si só, caracteriza uma sobreposição de papéis, cujos inconvenientes vão muito além da morosidade do processo legislativo, que assim se estabelece. A questão fundamental posta pelo papel revisor do Senado é a da qualidade da representação, ou de sua legitimidade.
A forma atual de distribuição e compartilhamento de funções do Poder Legislativo entre Câmara e Senado contribui para distorcer duplamente o sistema de representação proporcional. Primeiro, o sistema consagra uma desproporção entre o porcentual de eleitores de cada estado e o porcentual de cadeiras na Câmara dos Deputados. A principal razão para a alocação desproporcional, como é sabido, deriva da norma constitucional que estabelece um mínimo (oito cadeiras) e um máximo (70 cadeiras) por estado. Desse modo, um estado que proporcionalmente deveria receber uma cadeira, por exemplo, recebe oito, gerando distorções.
Segundo, essa situação vem agravar-se ainda mais ao se associar a ela o caráter não proporcional do número de cadeiras no Senado, onde todos os estados contam com o mesmo número de representantes, independentemente da variação no número de eleitores em cada estado. Assim, por exemplo, São Paulo, o estado mais populoso, tem três senadores, da mesma forma que Roraima, um dos estados menos populosos. E isso vale igualmente para todos os estados.
Além disso, os senadores – cujo mandato de 8 anos corresponde ao dobro do tempo de mandato dos deputados federais - exorbitaram de suas prerrogativas a ponto de se terem apropriado da competência de propor projetos-de-lei. Mais grave ainda, a Casa revisora passou a dispor de mais poder do que a Casa dos representantes diretos do povo, pois sobre a vontade da Câmara de aprová-los prevalece a vontade do Senado de anulá-los. Assim, progressivamente o Senado - que, diferentemente da Câmara, ignora, por função institucional, a diversidade dos grupos de interesses que compõem o conjunto da população -, apropriou-se das prerrogativas da Câmara, ampliando as suas competências e passando a ter iniciativa legislativa em áreas antes de atribuição exclusiva da Câmara.
Esse é o cerne do problema posto pelo papel revisor do Senado. Somente uma Constituinte exclusiva poderia reunir condições políticas que permitam suplantar os obstáculos levantados no Congresso Nacional contra o restabelecimento das funções originárias dessa Casa. Uma Constituinte comprometida com a legitimidade da representação cuidaria de confiar ao Senado Federal exclusivamente as funções referentes às relações entre os estados e a Federação. Com isso, a Câmara dos Deputados se dedicaria às questões que dizem respeito diretamente à população, com o benefício adicional de ganhos na agilidade nos processos, sem perda da qualidade técnica e política. É por esse caminho - o do restabelecimento das prerrogativas constitucionais da Câmara dos Deputados, via Constituinte exclusiva - que se poderá minorar os efeitos perniciosos da desproporcionalidade eleitoral no processo legislativo e fortalecer a legitimidade da representação.
Uma reforma política limitada a alguns temas apenas - como financiamento público das campanhas e fidelidade partidária -, que não traga para o debate público questões como a capacidade de representação das instituições e a implementação dos mecanismos da democracia participativa, previstos na Constituição, corre o risco de ter a sua eficácia e legitimidade contestadas pela vontade popular. Não se pode perder de vista que o anseio pela democracia participativa emerge historicamente da crise da democracia meramente representativa, não para substituí-la, mas para fortalecê-la. A irrupção dos movimentos sociais nos espaços de decisão pública, antes reservados exclusivamente aos chamados políticos profissionais, destituiu os partidos políticos da pretensão de serem os únicos atores nas decisões do Estado. É na crise do sistema representativo que assenta o principal argumento em favor da convocação da Constituinte exclusiva. É mediante a regulação dos mecanismos de participação, nunca debatida no Congresso, que se vai injetar substância democrática no formalismo de nossas instituições políticas tradicionais, que no seu desenho atual mais têm servido aos interesses dos políticos profissionais do que estes à sociedade.
É sobre esse pano de fundo que a Constituição Federal de 1988 consagra a convivência de ambas as modalidades de exercício da soberania no Art. 1º Parágrafo único onde lê: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. A segunda forma de exercício da cidadania - ou a democracia direta - permanece praticamente como mera letra constitucional, de grande valor decorativo, porém inócua. Uma Constituinte exclusiva cuidaria de dar corpo aos três mecanismos de participação previstos na Constituição: o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular. Pois até agora, em contraste com o que ocorre em outras partes do mundo - onde se torna cada vez mais freqüente o recurso à consulta popular - a inscrição da participação popular no exercício da democracia no Brasil tem sido mais retórica do que efetiva.
Ainda como justificativa para a convocação de uma Constituinte exclusiva lembram-se as muitas limitações atuais à utilização de tais instrumentos, introduzidas pelos políticos profissionais interessados em manter o monopólio do Congresso Nacional na elaboração de leis. Assim, por exemplo, quanto ao plebiscito e ao referendo, não existe a possibilidade de sua convocação direta pelo povo: só podem ser convocados por decisão do Congresso. Ao povo é concedido o direito de apresentar ao Congresso um projeto-de-lei de iniciativa popular propondo a convocação. Mas a iniciativa popular tem de submeter-se ao debate e à aprovação pelo Congresso. Esse trâmite processual anula em grande parte o sentido da participação, como consagrado na Constituição. Assim, a iniciativa popular na prática simplesmente deixa de existir, pois os projetos-de-lei de iniciativa popular não podem tramitar como tais, mas somente como projetos de iniciativa do parlamentar.
Diante de tantos obstáculos erigidos contra o preceito constitucional da participação direta, não estranha que, passados dezoito anos da promulgação da Constituição, nenhum plebiscito ou referendo tenha sido realizado por iniciativa popular, e somente dois projetos-de-lei por iniciativa popular tenham sido apresentados ao Congresso Nacional.
Para nós, o pleno êxito de uma reforma política, para valer, dever-se-ia medir pela elevação do grau de acesso das grandes maiorias cidadãs ao espaço do poder onde se processam as decisões. É somente mediante a ampliação desse espaço que se cumpre o ideal democrático da integral participação de todos e de cada uma das pessoas na vida política do País. O que nos leva a apoiar a convocação de uma Constituinte exclusiva é, pois, o desejo de assegurar uma nova forma de governar e de exercer a cidadania, pela qual os brasileiros possam atuar como sujeitos políticos capazes - no limite - de se autogovernar.
O risco implicado no fracasso da reforma política, ou no encalhe a meio caminho do processo de aperfeiçoamento político-institucional brasileiro - ao não se recorrer à Constituinte exclusiva para retomá-lo -, é cairmos de vez na “democracia vazia”, na “democracia delegativa”, que outra coisa não é senão o retrocesso em direção a uma democracia sem povo.
*Rui Falcão, 63 anos, jornalista e advogado, é deputado
estadual pelo Partido dos Trabalhadores. Já foi deputado federal, presidente do PT e secretário de governo na gestão Marta Suplicy.
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