Paulo Autran: uma vida dedicada ao teatro
Ator, diretor e produtor teatral faleceu nesta sexta-feira, aos 85 anos, de enfisema pulmonar
Beth Néspoli, do Estadão
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Morreu, aos 85 anos, o ator Paulo Autran
Falecido nesta sexta-feira, 12, aos 85 anos, de enfisema pulmonar, Autran, além do teatro, participou ainda de filmes, entre eles Terra em Transe, de Glauber Rocha, teleteatros e novelas na televisão. Sua carreira tem aspectos bastante originais. Raros são os atores, no Brasil, e no mundo, capazes de enumerar tantos protagonistas em sua trajetória, sobretudo num repertório de peso, como Paulo Autran.
Ao atuar pela primeira vez numa novela já tinha alcançado prestígio e popularidade - seu nome era reconhecido nacionalmente - por sua atuação nos palcos. Afinal, ele havia viajado por todas as regiões do Brasil apresentando desde tragédias gregas e shakespearianas até peças brasileiras de forte comunicação como Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, em palcos, quadras e até mesmo lonas de circo. Tal proeza, reconhecimento nacional através do teatro - atuou em apenas três novelas -, talvez nenhum ator jamais repita. E não só porque os tempos mudaram. Essa é trajetória é original mesmo dentro de sua geração.
Curiosamente, sua estréia profissional só se deu aos 27 anos, mais precisamente no dia 13 de dezembro de 1949, no Rio, na peça Um Deus Dormiu Lá em Casa, de Guilherme Figueiredo. Nessa peça, contracenava com a atriz Tônia Carrero, responsável pelo convite ao ator amador, que ela vira num palco de Copacabana, atuando na peça À Margem da Vida, de Tennessee Williams. Apesar da data de sua estréia profissional, quase ao fim da temporada anual, Paulo Autran ganhou os principais prêmios de ator daquele ano. "Não foi bom para mim. Era muito imaturo e, na época, fiquei completamente idiotizado", contou em entrevista ao Estadão.
A verdade é que, até então, não estava preparado para os percalços e glórias da nova profissão. Advogado formado na famosa faculdade do Largo de São Francisco, em São Paulo, Autran entrara pouco antes para o teatro amador como muitos jovens de sua época. Afinal, em 1943 o teatro brasileiro ingressara no modernismo com um grupo de amadores dirigidos por Ziembinski. "Eu não me sentia dentro de um movimento, ninguém sentia assim na época. Simplesmente fazíamos teatro. Éramos atraídos para isso. E todo mundo dizia que eu era muito ‘natural’ em cena." Tendo nascido no Rio, por conta das mudanças de endereço do pai, delegado, Autran cresceu em São Paulo.
Fã de Dulcina de Moraes, freqüentava teatro desde os oito anos de idade. Naquela época, o palco era tomado pelos grandes atores, de gestos ‘grandiloqüentes’, voz impostada. O movimento amador veio para mudar não só a hierarquia em cena, passando a dar igual valor a atuação, direção, iluminação e cenário, como também para mudar um estilo de representação. E o temperamento de ator de Autran - rigoroso na técnica, sóbrio, elegante, capaz de criar modulações de voz, de intenções e de gestos no limite da filigrana, adequava-se como uma luva às novas exigências do palco.
Estreou no TBC em 1946 como amador, antes da profissionalização da casa fundada por Franco Zampari. Foi numa excursão ao Rio, com um grupo amador dirigido por Abílio Pereira de Almeida que foi ‘descoberto’ por Tônia. Depois da entrada no mundo profissional com Um Deus vieram outras peças e outros prêmios. Foi salvo da ‘idiotia’ por Adolfo Celi, o seu grande mestre, um dos muitos diretores italianos contratados pelo Teatro Brasileiro de Comédia. "Com ele aprendi que a arte de interpretar exigia muito mais do que ser ‘natural’ em cena." Em 1951, o produtor Franco Zampari contratou Autran para o TBC e Tônia para a companhia cinematográfica Vera Cruz. Voltou então a São Paulo, declaradamente a cidade de seu coração.
No TBC, onde ficaria de 1951 a 1955 faria sua formação, sob a tutela de vários diretores de grande prestígio, como Ziembinski, Albert D’Aversa, Ruggero Jacobi e, sobretudo, Adolfo Celi. Nesse teatro, a meca do teatro brasileiro na época, amadurece como ator e, segundo ele própria afirmava, percebe o quanto precisa aprender, livrando-se da empáfia do jovem ator premiado. No TBC, atua em nada menos do que 18 peças, em pouco mais de quatro anos, entre elas Antígona, de Sófocles; Seis Personagens em Busca de um Autor e Assim É se lhe Parece, de Luigi Pirandello; Mortos sem Sepultura, de Sartre e Leonor de Mendonça, de Gonçalves Dias.
Em 1956, funda sua própria companhia com Tônia Carrero e, claro, o mestre Adolfo Celi na qual estréia no papel de Otelo numa interpretação unanimemente elogiada. Décio de Almeida Prado, o então respeitado crítico do Estado, escreveu que Autran não precisa altear o tom de voz para passar toda a autoridade, a força e a dor do general Otelo. A companhia termina em 1961, mas nesse curto período encena 17 peças, entre elas Fim de Jogo, de Beckett e Lisbela e o Prisioneiro, de Osman Lins. E foi na Cia. Tônia-Celi-Autran que ele conheceu seu primeiro retumbante fracasso, na peça Frankel, de Antonio Callado. "Era um drama ambientado no Xingu. No terceiro dia de peça, tinha quatro pessoas na platéia. E não foi muito além disso. Tivemos que suspender a temporada logo depois da estréia."
Em compensação, logo depois de desfeita a companhia dirigida por Celi, Autran atuaria no musical My Fair Lady e iria viver um estrondoso sucesso. Em seguida, viria Liberdade, Liberdade, Depois de Queda, de Arthur Miller, Édipo Rei e O Burguês Fidalgo e Morte e Vida Severina, todos grandes sucesso de público. "Uma coisa aprendi nesses anos todos de teatro. Não há regras", diria Autran em entrevista sobre os percalços da profissão. Sim, porque após essa série de sucessos, a coisa mudaria de figura. "Veio uma série de montagens mornas. Não eram um grande sucesso, nem um grande fracasso. De alguma forma, parecia que eu só fazia o já esperado de mim."
O impressionante é que nessa ‘série morna’ Autran enumera Macbeth, de Shakespeare; As Sabichonas, de Molière e Assim É... Se lhe Parece, de Pirandello. Pela primeira e única vez na sua vida, Autran afastou-se do palco durante seis meses. "Precisava pensar o que estava acontecendo na minha carreira." Chegou a conclusão de que ser a um só tempo ator e produtor atrapalhava. Decidiu então ‘oferecer-se’ ao diretor Antunes Filho. Foi assim, sob a batuta de Antunes, na peça Em Família, de Vianinha, em 1972, que recuperou seu bem-sucedido casamento com o palco. E nunca mais parou.
O mais jovens, aqueles que não tiveram a oportunidade de vê-lo em muitos desses grandes papéis - teatro é arte efêmera - certamente ainda puderam comprovar o seu talento nos seus últimos trabalhos. Por exemplo, na detalhada composição para o velhinho judeu da peça Visitando o Senhor Green. Os mais ousados, que esperam no camarim após o espetáculo para um abraço ao ator, invariavelmente surpreendiam-se com a diferença entre Autran e seu alquebrado Sr. Green. Mesmo fumando muitos cigarros diários, vício que lhe valeu algumas pontes de safena, Paulo Autran ostentava disposição invejável. Se não estava atuando, podia ser visto quase todo fim de semana na platéia dos teatros paulistanos. Jamais deixou de acompanhar a cena teatral.
Inquieto, nos últimos anos ainda arrumou tempo e energia para excursionar pela direção e apostar em novos talentos. Assim, dirigiu Vestir o Pai, de Mário Viana, protagonizada pela atriz Karin Rodrigues, uma grande amiga, por quem nutria profundo amor, e com quem se casou. E atuou na peça Adivinhe Quem Vem para Rezar, o primeiro texto levado ao palco do dramaturgo Dib Carneiro Neto, editor do Caderno 2.
Diante de um ator como Paulo Autran, o risco não é o excesso de reverência, mas o seu oposto - não dimensionar a importância de sua arte. Foi no bojo de uma renovação da cena que ele começou sua carreira, o surgimento do teatro moderno. Saíam de cena os arroubos do astro personalista, entrava o ator com inteligência para dissecar um personagem, revelar e ampliar seus sentimentos e contradições, aliando em iguais medidas intensidade e contenção. Outras inovações vieram, atores de sua geração arriscaram-se em experimentações. Paulo Autran não. Mas cuidou sim de aprimorar o modelo que adotou ao limite da minúcia, o que pôde ser plenamente comprovado na montagem de O Avarento, seu último trabalho no palco. Quem viu, não esquece sua interpretação do sovina Harpagon rica de detalhes, precisa nos tempos de humor. Se existir céu, Molière certamente o receberá de braços abertos.
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