segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Castañeda: cabe à História julgar Che Guevara


Pablo E. Chacón
De Buenos Aires
AFP

O guerrilheiro Che Guevara na Bolívia, em 1967



Jorge Castañeda nasceu na Cidade do México em 1953. Formou-se em filosofia e fez doutorado em História Econômica pela Universidade de Paris I. No momento, é professor da Universidade Autônoma do México e da Universidade de Nova York, nos Estados Unidos. Colunista do "El País", de Madri, do jornal mexicano "Reforma", do "Los Angeles Times" e da revista "Newsweek", foi durante muitos anos militante do Partido Comunista mexicano, o que o levou a estabelecer uma relação de amizade com Fidel Castro.

Acusado em diversas ocasiões de trabalhar para a Agência Central de Inteligência (CIA) norte-americana, Castañeda jamais desmentiu as alegações. A vitória do direitista Vicente Fox nas eleições presidenciais o levou ao posto de ministro do Exterior do México, em 2000. Sua renúncia, em 2003, surgiu porque ele discordou do apoio mexicano à invasão do Iraque pelos Estados Unidos.

Publicou livros como "Nicarágua: contradicciones en la revolución" (1980) e "Somos Muchos: ideas para el mañana" (2004). Conversou por telefone com Terra Magazine, de Nova York, sobre a figura de Ernesto Che Guevara. Leia a seguir a entrevista:

Terra Magazine: Alguns anos depois da publicação de "La Vida em Rojo", sua biografia de Che Guevara, e tendo em vista os novos documentos e arquivos descobertos a respeito do tema, o senhor acredita que haveria algo a acrescentar ao seu trabalho?
Jorge Castañeda -
Acompanho sempre com muito interesse tudo o que surgiu depois da publicação de meu livro, essa onda de biografias, elogios póstumos, agressões, homenagens etc, mas temo que nada que tenha sido publicado nos últimos anos acrescente algo essencial ao que escrevi.

Com certos ajustes de dados, e acrescentando alguns textos inéditos, a imagem de Guevara que tentei oferecer e que ninguém conseguiu refutar desde então não seria muito alterada. É claro que existem pessoas que têm outra imagem de Che, e têm todo o direito de expressá-la. E acredito que isso tenha acontecido.

O senhor se refere às biografias escritas por Anderson, Pierre Kalfon, Paco Ignacio Taibo II...
Sim, e a outras memórias que foram publicadas recentemente, como as de Régis Debray, além de livros de entrevistas com Fidel Castro em que ele expressou uma espécie de interpretação canônica da vida e da morte de Guevara, do martírio de Guevara e do exemplo de Guevara. Mesmo assim, essa interpretação não evitou - e não creio que alguém deseje evitar - que Che se tenha transformado, hoje mais que nunca, em um rótulo, um pôster, um objeto de merchandising contracultural. E isso até mesmo em Cuba.

Há muita insistência sobre a idéia de que sua biografia não é mais que uma interpretação pessoal sobre Guevara, e que ela deixa pouco espaço ao mito, à lenda.
Bem, essa era uma de minhas idéias iniciais ao desenvolver o trabalho. Mas sua questão parece implicar que exista alguma coisa como neutralidade na interpretação dos fatos, e está bem provado, até nas ciências exatas, que não há abordagem quanto a um objeto que prescinda de teoria prévia, nesse caso uma teoria da História, da luta armada, das condições que tornariam possível uma luta armada, da importância do carisma nas operações políticas latino-americanas. Não ocultei o fato. Pus as cartas na mesa e encarei o desafio e as críticas. Não creio que deva me queixar. Foi a escolha que fiz. Meu trabalho foi muito criticado em Cuba e, para falar a verdade, não muito defendido em qualquer outro lugar.

O mito de Che é tão forte que praticamente não deixa fissuras, espaços para hipóteses, dúvidas, perguntas. É estranho, porque em vida Guevara detestava isso, o culto à personalidade - um dos problemas que ele teve com os soviéticos, e algo que repercutiu em Cuba - e era um homem que, apesar de sua moderação e de sua lealdade orgânica a Castro, se permitia avaliar hipóteses, perguntar, duvidar, questionar e dissentir.

Ele questionava especialmente a relação, que em determinado momento se transformou em dependência quase absoluta, entre Cuba e a União Soviética. Mas é claro que não se tratava de alguém disposto a ventilar publicamente as fraturas surgidas no grupo que havia tomado o poder na ilha. Preferiu seguir seu caminho e mudar de ares. Ele não queria causar tropeços a Fidel, mas estava claro que não concordava com diversas das medidas que a revolução cubana havia tomado, nos campos de política cultural e econômica.

Devemos esclarecer, igualmente, que em momento algum Castro o reprova; ele se limitava a sugerir a Che a conveniência ou inconveniência de tais e quais medidas; além disso, Fidel não o abandonou na Bolívia, na selva boliviana. Foi Che mesmo quem se abandonou, por assim dizer, talvez involuntariamente.

O que é certo é que existem três ou quatro episódios que me parecem cruciais e que não consegui desvendar. O material referente a eles deveria estar nos arquivos dos serviços soviéticos de informações, mas infelizmente não está. E tampouco está disponível nos arquivos da Biblioteca Nacional, em Washington. Os arquivos secretos da elite que dominava o poder na antiga Tchecoslováquia não estão abertos a ninguém, até hoje. Talvez lá existam alguns dados novos. Mas, para ser sincero, duvido disso.

Não foi uma decisão premeditada, não creio que tenha sido uma decisão contra mim; o que quero dizer é que essa é uma política atual da República Tcheca: bloquear o acesso de todos os estudiosos a esses arquivos.

O que o senhor supõe poderia haver nesses arquivos, e que episódios o senhor gostaria de pesquisar mais a fundo?
Trata-se de três pontos. O primeiro é uma conversação secreta que Castro teve com Alexei Kosiguin, um dos líderes soviéticos, em Havana, em julho de 1966, quando Guevara já tinha partido para a Bolívia.

A conversa foi em parte divulgada, por fontes externas mas não pelas pessoas envolvidas, e seria possível dizer, como uma hipótese plausível mas não sustentada, que os soviéticos, representados por Kosiguin, fizeram saber a Castro que não concordavam com o aventureirismo de Guevara, coisa de que todos estavam muito bem informados àquela altura. Aliás, eles já haviam informado Guevara mesmo a esse respeito antes de ele partir para Angola, mas naquela região do planeta a União Soviética não tinha negócios importantes, nos anos 60. E, na América do Sul, sim.

De qualquer forma, nem Castro, nem Kosiguin, nem seus assessores mais próximos revelaram qualquer coisa sobre a conversa, ou se limitaram a expor o que revelei acima. Mas creio que pode ter havido algo mais.

O que poderia ser?
Algo como abandonar Guevara completamente à sua sorte, na selva, uma ordem que teria sido transmitida aos partidos comunistas de toda a região, que de fato jamais apoiaram Che. Monje, o secretário geral do Partido Comunista boliviano, negou apoio a ele, seguiu as ordens de Moscou.

A mim restam dúvidas sobre um suposto desinteresse de Castro pela sorte de Guevara. Àquela altura dos acontecimentos, a CIA e os militares bolivianos já sabiam que Guevara estava na Bolívia, e a ordem de assassiná-lo já havia sido dada. Era questão de tempo.

Mas é preciso matizar essa interpretação: não estou dizendo que Castro tenha traído Guevara, mas sim que, em determinado momento, não houve tentativa (ou mesmo intenção) de retomar o contato com ele; Che fazia parte de um grupo improvisado, que estava perdendo forças em uma selva sobre a qual nem mesmo os mapas de que eles dispunham eram exatos. Se hoje Castro decidisse contar o que transcorreu naquelas horas de conversa com Kosiguin, creio que seria preciso interpretar essas declarações à luz dos fatos expostos acima. Portanto, não há saída.

O que o senhor esperava encontrar nesses arquivos, então?
Os documentos que o lado soviético decidiu liberar sobre o assunto.

Mas o que o senhor diz é bastante eloqüente.
Eloqüente? Talvez possa ser considerado eloqüente simplesmente porque estou revelando a sombra de uma dúvida, nada mais. É certo que Castro pediu a Che que voltasse, e que manteve comunicações com ele enquanto pôde, mas em algum momento elas foram perdidas.

A segunda dúvida que restava como saldo de minhas pesquisas foi a conversa entre Guevara e os irmãos Castro, Fidel e Raúl, quando Che voltou da Argélia, onde havia pronunciado um discurso incendiário, em Argel.

Ninguém sabe o que foi dito entre eles, mas estou certo de que foi a primeira discussão forte entre os três, entre nosso homem, de um lado, e os irmãos Castro, depois que estes tomaram o poder. A demonstração de força de Guevara na Argélia havia sido uma provocação direta à União Soviética e à ideologia da monocultura. Quando ouvimos Fidel ou seu irmão falando sobre o episódio, hoje, o que dizem não faz muito sentido.

Outro ponto de interesse seria estudar seriamente a história de Tania, a única mulher que acompanhou Guevara à Bolívia. Ela morreu na selva, e foi sepultada em local secreto. Quando conheceu Che? Foi em Cuba, como a história oficial propõe? Ou em Praga, onde ele estava se preparando para voltar a Cuba depois do fracasso de seus planos em Angola? Era argentina ou uma agente infiltrada pela Stasi, o serviço de segurança da Alemanha Oriental? Dizem que ela estava perdidamente apaixonada por Guevara, mas isso é dito sobre todas as mulheres próximas dele.

E, por fim, mas isso já é outra questão que não me interessa tanto aprofundar, qual era a competência real de Guevara para comandar o Ministério da Indústria, em Cuba? Ao que parece, muito pouca, ou nenhuma. Se levarmos em conta o critério de "estímulos materiais", e não o de "estímulos morais", Cuba nunca teve pior resultado em termos de inflação e da colheita de cana-de-açúcar do que no ano em que Che esteve no posto. Enfim, ele talvez fosse melhor guerrilheiro que político, mas isso cabe à História julgar.

Terra Magazine

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