segunda-feira, 20 de agosto de 2007

O julgamento de José Dirceu

Pedro Estevam Serrano para Última Instância

A área profissional que elegi, a do direito, certamente não é das mais fáceis para se viver. Seja como advogado na defesa do direito das pessoas que me confiaram mandatos, seja em atividade docente, é relativamente comum, cotidiano, me ver posto em situações desconfortáveis na convivência social por ter de defender posições antipáticas, mas que sei por estudo e convicção que são as mais adequadas a um Estado Democrático de Direito.

Tratam-se, no mais das vezes, de valores propedêuticos, básicos, elementares, mas que passam as décadas e parece que certas esferas da opinião comum, de boa parte da mídia e dos agentes estatais não conseguem ou desejam entender.

Valores esses traduzidos em normas, quase sempre, de origem constitucional. Mas cujo maior mérito não é apenas o papel superior que possuem por serem positivadas no topo do ordenamento jurídico e sim pelo que significam como conquista humana, direitos do homem que foram sendo construídos pela história, a custa de vidas, reflexões, disputas e revoluções.

Valores e direitos fundamentais, como a defesa do Estado de Direito Republicano e Democrático; a legalidade como limitadora da conduta estatal; o direito fundamental da liberdade; o direito de defesa e ao amplo contraditório que implicam em ninguém poder ser condenado civil, administrativa ou criminalmente sem provas etc.

Quando sofro algum constrangimento pelo exercício de minha profissão, procuro lembrar que por pior que seja o exercício da advocacia, nem de longe se compara às agruras e saias justas pelas quais passa o juiz. Julgar, aplicando a ordem jurídica, muitas vezes contra a opinião da mídia, leiga, mas que supõe poder julgar a tudo e a todos segundos seus critérios políticos e de interesse setorial.

Vejo agora, nesta semana que entra, a dificuldade em que se encontram os ministros do STF para decidir se aceitam ou não a denuncia contra os 40 envolvidos no estrepitoso caso do mensalão, em especial a denúncia contra o ex-ministro José Dirceu.

José Dirceu foi julgado, ou melhor, linchado pela mídia. A opinião de parcela significativa da sociedade já se encontra devidamente posta contra ele pelos meios de comunicação. Ao ter seu mandato cassado pelo Legislativo, sem a presença de prova alguma de conduta ilícita, se transformou em bode expiatório do descontentamento de parte da sociedade e da oposição com a vitória de Lula e seu desempenho no governo. A perda política que sofreu, creio, está próxima do irreparável.

No plano político, José Dirceu inegavelmente contribuiu para tudo isso. Cometeu erros políticos cujo resultado negativo amargará por toda sua existência.

Mas um aspecto pode não ser simpático a amplos setores sociais e da mídia, mas me parece irrefutável. As suspeitas que ensejaram as investigações contra ele no caso do Mensalão não encontraram sequer uma prova minimamente consistente que sirva como arrimo.

Este aspecto fundamental do caso, a meu ver, coloca o julgador numa tremenda saia justa, mas que é de seu dever enfrentar: a denúncia contra José Dirceu deve ser arquivada como medida de observância de seus direitos fundamentais, previstos na Constituição. Cumprir a Constituição nem sempre é fácil ou simpático, mas é o que nos fortalece como nação.

Pode-se querer argumentar que a aceitação da denúncia não é um julgamento definitivo, que ainda existirá o contraditório do processo onde provas poderão ser produzidas contra ele.

A meu ver, nada mais equivocado. A aceitação da denúncia deve ocorrer quando dúvida houver, “in dúbio pro societate”, mas obviamente esta dúvida deve ser ocasionada por conta de interpretação das provas produzidas, de um mínimo probatório a lastreá-la. Em contrário, não haveria motivo para a existência desse juízo primeiro de aceitação ou não do pedido, bastaria haver a denúncia para que a ação penal se instaurasse.

De outra banda, é de se convir que a ação penal não é o instrumento adequado à obtenção de provas. Para isso, existe a investigação e o inquérito, mesmo porque o debate judicial ocorre nos limites do “an debeatur”, da conduta descrita e dos fatos apontados com base no inquérito havido. Em contrário, significa transformar a ação em verdadeira devassa abusiva, onde a qualquer tempo “novidades” imprevistas podem surgir às textilhas com o direito de defesa e do contraditório.

Contra José Dirceu nada mais existem que suspeitas incomprovadas. Submetê-lo ao ônus de ser réu em ação penal com este fundamento agride seus direitos fundamentais e, a rigor, os direitos de toda cidadania. Bastará amanhã a mera suspeita contra qualquer um de nós para que se nos oponha o injusto papel de réu em ação penal.

Pode-se não concordar com José Dirceu. Pelo que acompanhei seu desempenho no governo, sou um de seus críticos nesse aspecto. Pode-se não simpatizar com José Dirceu. Não confiar nele, não apoiá-lo em suas pretensões políticas. Mas a defesa de seus direitos fundamentais é um símbolo que o comportamento cidadão exige como demonstração de que nossos valores constitucionais pairam acima de qualquer poder existente no tecido social, inclusive o exercido pela mídia e seus veículos.

Aos julgadores, nossa humilde solidariedade. Acho que só quem convive no cotidiano com as questões de direito para entender em toda sua extensão a dificuldade que esse momento exige. Que a coragem de defender a Constituição se sobreponha ao receio da antipatia.

Segunda-feira, 20 de agosto de 2007

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