quinta-feira, 21 de junho de 2007

O coronel herói

Pedro Estevam Serrano*

Pelo que conheço das idéias de Carlos Lamarca, divirjo delas. Numa perspectiva atual, são atrasadas, conformadoras de um projeto localista de socialismo, que acaba por levar a Estados autoritários e improdutivos, como se verificou na história da século 20.

Mas também divirjo do fato de um homem branco poder possuir escravos de outra etnia, como o fez o grande herói norte-americano e da humanidade Thomas Jefferson. Admiro imensamente George Washington, inobstante lamente sua participação no extermínio das nações indígenas que ocupavam o território norte-americano e divirja de sua posição quanto ao apoio à Revolução francesa.

Freud, a meu ver, foi um dos maiores gênios da história humana, embora seus escritos quanto à homoafetividade e sua visão do papel da mulher na vida social sejam equivocados, por conta, obviamente, da moral da sociedade vitoriana em que vivia.

O que se verifica é que grandes figuras humanas não podem ter sua grandeza posta à parte de sua dimensão humana e das circunstâncias históricas que viveram. Todos erramos. E nossos erros têm de ser entendidos a partir das condições históricas que vivemos.

Na época em que Jefferson viveu, agricultores como ele possuíam escravos. Isto não empece sua grandiosidade como líder da construção da independência dos EUA e de sua democracia constitucionalista.

George Washington foi duramente criticado por Jefferson por sua posição de ingratidão face aos revolucionários franceses que haviam apoiado a revolução norte-americana. Washington errou, mas um erro não prejudica sua grandiosidade. Ao contrário, lhe dá feição humana, tornando-o mais próximo daqueles que o admiram como figura histórica.

Lamarca lutou pelo que acreditava. Lutou contra uma ditadura violenta, sanguinária e covarde. Não integrou nenhum governo comunista autoritário. As críticas que lhe fazem são dirigidas a suas idéias como comunista. Nunca chegou a vê-las realizadas, embora tenha sido assassinado por elas.

Ingressou no Exército durante a vigência de um regime democrático. Desertou dele para lutar pela democracia que este mesmo exército ajudou a destruir. Preferiu a lealdade à sociedade e à democracia que à corporação. Agiu de forma inequivocadamente republicana.

O fato de ter pegado em armas contra o regime militar se legitima integralmente pelo caráter violento e supressivo das liberdades desse regime. A democracia e suas liberdades servem exatamente para substituir a luta física entre oponentes políticos pelo debate de idéias. A inexistência da democracia leva ao conflito.

As ditaduras de qualquer matiz ideológico podem, legitimamente, serem combatidas pelas armas de um povo insurrecto, afinal não há outra forma de expressão de descontentamento numa ditadura.

Lamarca errou. O povo que achava estar a seu lado não aderiu à sua luta. Seu modo de ação mostrou-se ineficaz, ingênuo e fadado à derrota. Mas a derrota não mitiga sua grandeza humana, heróica.

Os agentes públicos civis e militares que serviram de algozes dos que lutaram contra a ditadura, usando do Estado para submeter militantes e outras pessoas a uma situação de impotência e, só então, covardemente, torturá-las e/ou matá-las, estão por aí, escondidos em sua maioria pela vergonha do que fizeram, protestando escondidos atrás de “Clubes Militares” e ainda portando a farda que envergonharam e os respectivos vencimentos.

Lamarca não exercia função estatal quando lutou. Aberta e corajosamente enfrentou o governo de então por suas idéias. Correspondeu ao ideal de coragem e honra que se deseja de um militar. Assumiu publicamente suas crenças e atos. Morreu por eles. Leia mais no Última instância

*Pedro Estevam Serrano é professor de Direito Constitucional da PUC-SP e autor do livro “O Desvio de Poder na Função Legislativa”, editora FTD.

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