terça-feira, 6 de novembro de 2007

Na contramão do catecismo neoliberal

Vencedor do prêmio da crítica por A Questão Humana, Nicolas Klotz voltará à Mostra como homenageado em 2008

Luiz Carlos Merten - O Estado de São Paulo

Durante a preparação de A Questão Humana, o diretor Nicolas Klotz e sua mulher e roteirista, Elisabeth Perceval, assistiram, um pouco por prazer e outro tanto por pesquisa, a diversos filmes. Dois os marcaram muito, dois clássicos. É famosa a cena final de Tempos Modernos, de Charles Chaplin, de 1936, que mostra o próprio Chaplin, como Carlitos, e Paulette Goddard naquela estrada que representa a vida e lhes acena, afinal, com a promessa de felicidade. Aquela estrada levou-os ao outro filme que Klotz e Elisabeth citam - Nuit et Brouillard, de Alain Resnais, de 1955, sobre o horror dos campos de concentração dos nazistas.

Esta idéia, este conceito, percorre La Question Humaine (título original), que foi o filme vencedor do prêmio da crítica na 31ª Mostra Internacional de Cinema São Paulo, encerrada na quinta-feira, dia 1º. Normalmente, um filme como A Questão Humana teria permanecido na repescagem que vai até quinta, mas a cópia precisou retornar a Paris. Não se preocupe, se ainda não viu o queridinho - merecidamente - dos críticos na Mostra deste ano. Jean-Thomas Bernardini, da Imovision, negocia os direitos do filme de Nicolas Klotz, que poderá ser uma das atrações anunciadas de 2008 nos cinemas brasileiros.

Klotz, desta vez acompanhado pela mulher, veio pela terceira vez a São Paulo Paulo, onde já teve, antes deste, exibidos quatro outros filmes - A Noite Sagrada, Pária, Nus e A Ferida. Sua primeira visita à cidade foi com Pária, em 2001 (o filme é de 2000). Ele voltou com A Ferida (La Blessure), em 2005 e agora com A Questão Humana. Os três filmes formam o que o diretor e a mulher definem como uma trilogia sobre o mundo contemporâneo. Volta a Tempos Modernos. Há 71 anos, Chaplin mostrou sua antevisão do mundo moderno, no qual Carlitos era engolido por uma máquina antes de reencontrar, na estrada, a sua humanidade. Chaplin já intuía que a desumanidade seria um dos graves problemas trazidos pelo desenvolvimento. Discutir a questão humana é essencial para o casal Klotz/Perceval. Ele dirige, ela escreve, mas ambos falam no 'nosso filme'.

Um caso de parceria que se consolidou no teatro, antes do cinema. Klotz já dirigia, Elisabeth atuava. Mas era muito difícil conseguir os fundos para as peças que eles queriam montar. Quando se iniciaram no cinema, perceberam que seria ainda mais difícil conseguir dinheiro para o tipo de filme crítico e comprometido que pretendiam fazer. Há poucos anos, abriram mão do teatro. 'É muito desgastante combater em duas frentes', resume Klotz. Nos dois primeiros filmes da trilogia, Pária e A Ferida, Klotz e Elisabeth trataram do exílio e dos excluídos. A Ferida é exemplar do tipo de pesquisa estética e política que eles gostam de levar. O filme conta a história desta mulher africana que chega a Paris, tentando conseguir asilo para se reunir ao marido. As autoridades a ameaçam de deportação. Ela é ferida num incidente. A ferida é uma metáfora da dor que a consome internamente. O diretor conta sua história com indignação e compaixão.

A Questão Humana lida com outra faixa social. 'É nosso primeiro filme interpretado por nomes importantes do cinema francês - Mathieu Amalric, Jean-Pierre Kalfon, Michel Lonsdale -, mas isso não mudou em nada nosso método. Fizemos o filme nas mesmas condições, com o mesmo dinheiro', conta o diretor. Amalric faz um psicólogo no departamento de Recursos Humanos de uma grande empresa multinacional em Paris. Ele é encarregado por um dos diretores da sede, na Alemanha, de avaliar a saúde mental de um dos executivos na França. Mais do que signos de doença, ele descobre a ligação passada do sujeito com o nazismo. Passa a receber provas que apontam para um comprometimento maior. Entre elas vem este memorando, datado de 1942, no qual engenheiros nazistas apontam, com linguagem técnica totalmente desprovida de emoção, o aperfeiçoamento de uma máquina utilizada para exterminar judeus.

A partir daí, o tema de A Questão Humana vira a ligação da Shoah com a moderna administração de empresa, que também se vale de métodos desumanos na avaliação de seus funcionários. 'A Questão é um relato em forma de alegoria, que trata da empresa moderna, mas na verdade tem uma origem muito anterior, na Shoah', diz o diretor, acrescentando que este é o mesmo princípio do livro de François Emmanuel em que Elisabeth e ele se basearam. Emmanuel pode ter fornecido a base, mas o conceito vem de Jacques Derrida, quando ele diz - 'A primeira vítima do nazismo foi a língua de Goethe.' Como o escritor, Klotz e Elisabeth ficaram aterrorizados com o teor de desumanidade dos nazistas, que utilizavam as palavras de forma puramente técnica, sem que em nenhum momento viesse à tona a discussão ética sobre o significado de aperfeiçoar máquinas cujo objetivo é eliminar o outro.

'É um fato que os homens se utilizam de palavras para desqualificar seus inimigos mortais, reduzindo o outro a uma insignificância tão grande que termina por autorizar tudo o que vier a fazer contra ele, pois, afinal, é zero.' É Elisabeth Perceval quem fala e o rosto desta mulher, que, além de atriz e roteirista, é também mãe e avó exprime compaixão. É o que mais atrai no casal Klotz/Perceval. Eles fazem este cinema de 'esquerda' porque se preocupam com o humano. O assunto vira o que é ser de 'esquerda' hoje em dia e o repórter cita a reportagem da revista francesa Le Nouvel Observateur sobre o novo livro de Bernard-Henry Lévy, no qual o filósofo avalia a herança intelectual do socialismo, contando que, quando o então candidato Nicolas Sarkozy tentou cooptá-lo para sua candidatura de centro-direita, ele recusou a proposta, dizendo que não poderia votar contra a sua 'família'.

Klotz e Elisabeth não se impressionam muito com o posicionamento de Lévy. 'Ele diz isso, mas ao mesmo tempo ataca a imprensa que ainda se mantém de esquerda, acusando-a de formar uma frente fascista contra os EUA de George W. Bush.' Para a dupla Klotz/Perceval, criticar o presidente norte-americano ou os métodos nazistas de administração de empresa nas economias neoliberais que compõem o mundo global fazem parte do mesmo movimento. Esta consciência levou o casal a elaborar a particular dramaturgia de A Questão Humana. Existe toda uma parte de mistério, mais que de suspense, que termina por desestabilizar o personagem de Amalric. Ele se descobre no centro de uma luta por poder, na medida em que um diretor quer eliminar o outro para fortalecer a própria posição. São leões que descarregam suas energias em baladas noturnas regadas a fado, flamenco ou rave. Mas a questão essencial é lingüística - remete à palavra. Como quebrar a língua técnica e racionalista da empresa moderna? Como quebrar a linguagem da burocracia no filme anterior?

Tal é a questão - o ser ou não ser sobre o qual repousa, hoje, a 'questão' humana. A verdadeira questão, segundo o casal, é se ainda existe o humano e até onde vamos lutar por ele num mundo em que a desumanidade e a ausência de compaixão estão construindo um novo horror. Klotz e Elisabeth levantam essa interrogação em seu filme e, até por uma questão de coerência, trazem esse posicionamento para a vida deles. Mas não são panfletários, e isso faz toda a diferença. Como o filósofo desconstrutivista Jacques Derrida, eles defendem, na sua práxis, mais do que pelas palavras de uma entrevista, a necessidade de resistência e engajamento contra esse novo catecismo liberal que toma conta do mundo. A boa nova final é que Leon Cakoff já anunciou - a Mostra do ano que vem vai fazer uma homenagem a Klotz. Ele deve voltar a São Paulo para acompanhar a retrospectiva anunciada de sua obra.

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