Mundo de sombras
Miriam Leitão
O Brasil trafega entre luz e sombras. Às vezes, parece que vai ser tragado pelas sombras. Uma adolescente trancada por 20 dias com vários homens sob o olhar conivente de autoridades policiais, sendo estuprada diariamente. Índios mantidos em trabalho degradante numa das maiores usinas de álcool do Brasil. Mas a economia vai bem, a bolsa brasileira é recordista mundial, e o país resiste bem à crise americana.
Na Arábia Saudita, uma monarquia tirânica e medieval, um juiz condenou uma jovem de 19 anos, que foi estuprada, a uma pena de 200 chibatadas. O assunto está virando uma crise internacional.
Os pré-candidatos à eleição presidencial americana querem que a Casa Branca exija do governo saudita — principal aliado árabe dos Estados Unidos — a suspensão da pena absurda que recaiu sobre a vítima.
Mukhtar Mai, uma paquistanesa, foi estuprada por ordem de um conselho tribal. Hoje o livro “Desonrada”, contando sua incrível reação e luta, está na terceira edição no Brasil.
Um texto meu serviu de prefácio, o que, para mim, foi uma honra. As histórias da saudita e da paquistanesa viraram casos mundialmente conhecidos.
O nosso caso era notícia internacional ontem. A vergonha é nossa. Mas aqui o que intriga a polícia é se a jovem tinha 15 ou 19 anos.
— Se ela dissesse que era menor, seria dado outro procedimento — diz o superintendente da Polícia Civil, Fernando Cunha.
Fica-se sabendo, assim, que, no Pará, um superintendente da Polícia Civil acha que há uma idade a partir da qual a mulher pode ser submetida a esse “procedimento”. Como a jovem, pelo que se diz, teria duas certidões de nascimento, o superintendente ficou nesta dúvida. Se ela tiver 19 anos, o procedimento hediondo está correto? O que espanta é a certeza dos policiais do Pará de que ficariam impunes.
Submeteram uma adolescente a uma situação infame e dormiam tranqüilos.
O noticiário que se seguiu mostrou que ela pode ser apenas mais uma.
Tranqüilos também estavam os administradores e dono da Companhia Brasileira de Açúcar e Álcool. Depois que foi divulgada a notícia dos 831 índios em trabalho degradante numa das fazendas do grupo, em Brasilândia (MS), muita coisa já mudou.
Banheiros químicos foram instalados nos canaviais, agora os trabalhadores têm água para lavar as mãos e tirar os resíduos de agrotóxicos antes de almoçar.
Uma lona foi improvisada no local, cobrindo as recémchegadas mesas e cadeiras para ser uma espécie de refeitório.
Ônibus mais novos substituíram os velhos e inseguros veículos que transportavam os trabalhadores.
— Fizeram o mínimo, o básico, coisas simples, mas já mudou muito — diz Wladimir Pollecci, o engenheiro integrante da equipe móvel do Ministério do Trabalho que está no local.
A auditora do Ministério do Trabalho que chefia a operação, Jaqueline Carrijo, confirmou o quadro de horrores descrito pelo procurador do trabalho aqui na coluna e acrescentou: — A empresa já foi autuada várias vezes, sempre foi orientada a corrigir as falhas. Está tudo nos livros de registro das fiscalizações.
São dez anos de ocorrências, dez anos de descumprimentos — diz.
Os trabalhadores indígenas dormiam sobre colchões mofados, sem roupa de cama, em alojamentos cobertos com telhas de amianto num espaço tão exíguo que é difícil imaginar como cabiam lá.
— Num dos alojamentos, de 2,80 metros por 9,4 metros (26 metros quadrados), dormiam 20 índios — diz Wladimir.
O empresário, presidente do grupo, José Pessoa de Queiroz Bisneto, quando falou comigo, tratou tudo como um problema inesperado; um acidente.
Mas a verdade é que, desde 2005, a Polícia Federal instaurou um inquérito pelas denúncias de trabalho degradante na fazenda, segundo me contou o delegado Flávio Cuppari: — Tudo ultrapassa o limite do ruim, é subumano e discriminatório.
O delegado deve enviar em breve o inquérito à Justiça, mas admite que dificilmente alguém vai para a cadeia.
— Para um indiciado ser condenado nestes casos, é preciso se provar que ele tinha efetiva consciência do que se passava. Os donos não moravam aqui, não estavam presentes, vão delegando funções. Em todos os casos que vi de trabalho escravo, se alguém vai preso, é o jagunço; nunca o empresário.
A certeza da impunidade que levou os policiais a manterem a jovem presa com os homens é a mesma que permite que empresários garantam que desconhecem o que se passa em suas empresas.
O Brasil tem vários pontos de luz. Nas últimas duas décadas, houve avanços sociais, econômicos, macroeconômicos.
Muitas empresas se modernizaram, adotaram novos valores. Até por isso é espantosa a permanência de barbaridades e violências. Uma sociedade onde acontecem fatos como o da jovem presa com os homens tem que se perguntar o que tem feito de errado. Os casos de trabalho análogos à escravidão, ou de trabalho degradante, nos canaviais, na pecuária, são freqüentes demais para serem tratados como um fato isolado, um exagero dos fiscais do trabalho.Tem que ser visto como é: um ataque aos direitos humanos mais básicos, um crime que exige castigo.
O Brasil avança, resolveu problemas e obstáculos, pode crescer, se desenvolver, enfrentar velhos dilemas.
Tem tudo para ser um dos grandes países do mundo.
Mas não pode se conformar com o progresso pela metade; não pode se acostumar com o acintoso desrespeito às leis. A reação indignada dos brasileiros é a única resposta.
Será um ponto de luz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário