O espantalho do terceiro mandato
Luiz Weis
O Estado de São Paulo
Se o presidente Lula for tomado por uma acesso de insanidade e, contra todas as evidências, embarcar nessa aventura que ele rejeita publicamente dia sim, o outro também, os tucanos terão um motivo real para fazer do que até hoje outra coisa não é senão a sua guerra particular uma legítima Batalha de Stalingrado pela santidade do princípio da alternância no poder. Já se a norma for mantida sem percalços, eles sempre poderão dizer que, não fossem as suas denúncias a tempo e hora, ela teria sido atropelada pelo chavismo da nação petista e do seu primeiro companheiro.
O PSDB começou a agitar o pano vermelho nos idos de janeiro, quando o deputado Devanir Ribeiro (PT-SP) ainda estava longe dos 15 minutos de fama com o seu nefasto projeto de emenda constitucional que daria ao presidente da República a prerrogativa de convocar plebiscitos sobre o que lhe desse na veneta, à revelia do Legislativo. Portanto, nove meses antes que saísse da obscuridade o "velho amigo íntimo" de Lula, como os tucanos e setores do comentariado político se apressaram a identificá-lo, foi posta a circular a versão de que o Planalto tratava de criar as condições para que o presidente começasse a "trabalhar por um terceiro mandato".
Naturalmente, era tudo muito iffy, como dizem os gringos. O motor começou a rodar não com uma acusação frontal, baseada em fatos, mas com uma especulação pontilhada de condicionais, que invocava a "lógica" - Lula não tem um sucessor natural capaz de herdar os seus 58 milhões de votos e tem toda a popularidade do mundo para fomentar um clamor popular pela re-reeleição, mediante um casuísmo que o Congresso não se furtaria a aprovar. Espantalhos não se fazem num dia, porém. Quanto mais gradual a sua montagem, maior o seu poder de assustar. Sem falar que teorias conspiratórias só têm compromissos com as intenções de seus autores.
O PSDB atou-se à teoria do terceiro mandato literalmente à falta de melhor. Seja para transformá-lo no mensalão do segundo - com a diferença de que o original foi um dado da realidade -, seja para mascarar o próprio apagão de idéias e ideais. Em agosto de 2005, quando Duda Mendonça, o marqueteiro do coração de Lula, contou ter sido remunerado com depósitos em conta secreta no exterior, faltou ao partido tutano para levar o presidente ao mata-mata de um pedido de impeachment. Faltou decerto porque um mês antes O Globo revelou os primeiros indícios do que ficou claro como o sol na semana passada - o mensalão tucano da campanha mineira de 1998.
Agora, trata de arar o terreno para a semeadura de uma crise mensalônica que poderia restaurar o seu patrimônio como oposição ao lulismo, dilapidado - desgraça pouca é bobagem - duas vezes. Na campanha de 2002, quando escondeu o presidente Fernando Henrique do horário eleitoral, e na seguinte, quando se envergonhou das privatizações no seu governo. Desta vez, é como se, perversamente, o PSDB desejasse que Lula incentivasse uma iniciativa terceirista, para armar o barraco. Mesmo sem isso, já faz desfilar a assombração no Senado, para impedir que alguns dos seus ajudem de caso pensado a aprovar a prorrogação da CPMF.
Curiosa família, a dos ranfastídeos. Tentam levar o povo no bico, apostando na sua proverbial desmemória. Fizeram em 1997 o que afirmam, horrorizados, que Lula quer fazer em 2007, apenas com um re a mais: aprovaram a emenda da reeleição, de quebra com uns votinhos comprados nos grotões, valendo já para o presidente de turno - senão, cadê a graça? No ninho, raras aves ousaram criticar a abolição da regra do impedimento com a bola rolando. Era para o bem, retrucavam os fernandistas no Congresso, na imprensa e na intelligentsia. Exatamente o que diriam os partidários do Lula-3. Eles existem, mas apitam o mesmo que aqueles poucos tucanos favoráveis à reeleição a partir de 2002.
O drama do PSDB, que deu no factóide que está aí, não tem mistério. O partido perdeu a pele social-democrata (leia-se: de esquerda modernizadora, à espanhola) com que veio ao mundo, em 1988, e a pele apefelada que a substituiu é o tipo da coisa fora de lugar diante desta sociedade que pode não ser mais justa, mas se "pensa mais justa", no fino registro do ex-ministro Delfim Netto, no Valor de segunda-feira. No mesmo jornal, a propósito, o repórter Caio Junqueira anotou dias antes as didáticas diferenças entre o primeiro programa tucano e o aprovado no congresso-convenção da última semana, em Brasília. O novo documento não contém nem o termo progressista, nem o nome Nordeste.
Mas o pior de tudo, como os tucanos só admitem na penumbra, é a sua respeitável dificuldade de combater um governo que cumpre essencialmente o seu, deles, programa. Assim como seria uma festa para o PSDB se Lula desse corda ao terceiro mandato - que não pegaria bem para ele nem no exterior, como sabe -, teria sido uma apoteose se Lula esquecesse o que assinou na Carta ao Povo Brasileiro, de junho de 2002 - e no ano seguinte entregasse as chaves do Planalto ao velho PT. Tendo os fatos transcorrido como transcorreram, o PSDB continuou no poder, como emanação doutrinária. Virou um autor à procura de um enredo.
Ainda mais depois da invertida que levou, em pleno convescote, do procurador-geral da República, que tirou o chão sob os pés do partido nascido do manifesto repúdio dos seus fundadores aos "métodos quercistas" de fazer política e governar. Hoje se sabe que também grão-tucanos são chegados à ética de resultados, como a companheirada da trincheira em frente. Restaram, no atacado, a apelação do terceiro mandato; no varejo, os constrangedores ataques pessoais de Fernando Henrique a Lula. O debate público nacional podia passar sem uma coisa e outra.
Luiz Weis é jornalista
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