Por Luiz Carlos Mendonça de Barros, José Roberto Mendonça de Barros e Paulo Pereira Miguel
Valor
Após cinco anos de crescimento global quase sem precedentes na história econômica documentada, a desaceleração da economia americana aumentou a incerteza em relação à continuidade deste excepcional momento. Afinal, durante décadas, a liderança dos EUA para a prosperidade mundial dificilmente poderia ser contestada, em função de sua posição de consumidor de última instância da produção global. É natural, portanto, que os economistas tenham se acostumado a usar grande parte de seu tempo tentando entender a dinâmica na economia americana, como atalho para antecipar os destinos globais. A grande novidade, que tem ficado muito clara desde o ano passado, é que não é mais possível pegar atalhos para entender a economia mundial. Isso porque há um novo ator fundamental, que tem uma dinâmica própria e muito diferente da de um país desenvolvido: a China. |
O crescimento da China tem sido tão fenomenal, em uma lógica de convergência acelerada para níveis de renda per capita mais altos, que tem arrastado o resto da Ásia e, cada vez mais, todos os países que de alguma forma tenham algum papel a desempenhar neste processo. O ciclo econômico chinês existe, mas tem se dado ao redor de uma tendência de crescimento muito forte. A seqüência, ano após ano, ao longo de quase três décadas, de taxas de crescimento próximas a 10% ao ano gerou massa crítica suficiente para tornar a China o novo pólo dinâmico global. A China ainda é menor - e continuará sendo ainda por muito tempo - que os EUA em termos absolutos, mas a velocidade de crescimento é tal que sua contribuição para a expansão da economia mundial já é maior que a dos EUA. |
Ameaça para muitos, oportunidades para outros, entender a questão chinesa é fundamental para qualquer planejamento estratégico, no nível empresarial ou nacional. O trabalho é tão mais difícil quanto mais o país progride e muda, também com grande velocidade, condicionado pela rápida urbanização. É interessante para a análise ilustrar a China como um dragão de três cabeças. |
A primeira cabeça é a que devora vorazmente quantidades antes inimagináveis de energia, matérias-primas industriais e, cada vez mais, commodities agrícolas. Os preços relativos das commodities cresceram e é razoável esperar que se mantenham altos por muito tempo. No caso de energia, por exemplo, o perfil de consumo chinês ainda é muito voltado para o setor industrial e apenas agora a parcela destinada ao transporte e à infra-estrutura comercial e residencial, majoritária em países de renda mais alta, começa a ganhar espaço. A convergência do perfil de consumo chinês para o de países mais desenvolvidos e o forte investimento em infra-estrutura - que tem acelerado no interior do país com dezenas de milhares de quilômetros de rodovias em construção - implica grande crescimento da demanda de energia nos próximos anos. |
A AIE estima que em 2006 a demanda chinesa ultrapassou a da Europa e deve atingir o nível dos EUA na próxima década, muito mais rápido do que havia estimado em 2002. Na parte de commodities metálicas, o mesmo acontece. Outro aspecto de importância fundamental da primeira cabeça devoradora de commodities é uma industrialização de base rápida e altamente poluidora, que já tem mobilizado os estrategistas chineses para o aumento da eficiência no uso de energia e matérias-primas. |
As oportunidades para empresas bem posicionadas para fornecer estes produtos são enormes, transformando cadeias industriais inteiras, e, de forma mais ampla, mudando da água para o vinho os termos de troca, o padrão de inserção internacional, o perfil do balanço de pagamentos e o ambiente econômico de inúmeros países. |
A expansão das cadeias de recursos naturais é muito mais ampla do que se imagina, pois inclui grande crescimento de produtividade, novos produtos (bioenergia, alcoolquímica etc.) e serviços (TI aplicada, pesquisa e serviços ligados à biotecnologia, petróleo, entre outros). A imensa maioria dos novos investimentos no Brasil está nestas cadeias. Apenas na área de bioenergia são esperados investimentos de US$ 20 bilhões nos próximos cinco anos. O movimento global por energia limpa e desenvolvimento com menor impacto ambiental oferece oportunidades para o Brasil. |
Sob o ponto de vista macroeconômico, o Brasil é talvez um dos exemplos mais ricos do poder de um súbito aumento da demanda mundial e dos termos de troca para alterar a dinâmica de uma economia, mesmo em um ambiente de paralisia institucional. A virtual eliminação da secular fragilidade do balanço de pagamentos, com a concomitante valorização e redução da volatilidade da moeda nacional, tem sido o fator preponderante para a economia brasileira. No ambiente empresarial, a resposta de parte da indústria - agribusiness, mineração, siderurgia etc - é extremamente rápida e eficiente, sendo estes setores os ganhadores claros da nova dinâmica global. |
A segunda cabeça é a que produz bens manufaturados, em elevada escala e com baixo custo. Inicialmente focada em manufaturas leves, a China inundou o mundo nos anos 80 e 90 com produtos têxteis, eletroportáteis e bens de consumo de baixo e médio valor agregado, provocando um efeito deflacionista global que apenas agora começa a perder força (mais sobre isso à frente). Isso significa menor poder de preços para as empresas brasileiras, obrigando-as a mudar a visão estratégica, com foco em volume de vendas, consolidação setorial e investimento (o mercado de capitais tem sido ferramenta essencial para esta mudança). |
Após o susto inicial, a indústria brasileira tem respondido a este desafio, internacionalizando suas fontes de suprimentos (inclusive com investimentos no exterior), visando reduzir custos de produção. Mas este movimento de abertura da economia e das empresas só tem sido possível por conta do aumento da capacidade de importação, derivada do choque favorável no setor de commodities, que expõe número crescente de setores à maravilha da globalização no mercado de bens (antes a globalização era entendida - e para muitos ainda é - apenas através do canal financeiro) e contribui para reduzir a volatilidade da economia e alongar os horizontes de planejamento empresarial. Novas teias de distribuição emergem, com densidade e amplitude que apenas começam a tomar corpo. Há desafios e muitos perdedores, mas também temos visto muitos casos de sucesso entre os que entendem a nova realidade, mesmo sob condições assimétricas de competição. |
Mas a segunda cabeça do dragão não pára nos bens manufaturados de baixo e médio valor agregado. A China está deixando de ser uma plataforma de montagem e tem galgado rapidamente novas etapas de sofisticação industrial, tornando-se um duro competidor global em bens de consumo de maior valor (automóveis, eletrônica de consumo de alto nível) e bens de capital (material de telecomunicações, equipamentos etc), enquanto as exportações de manufaturados leves (têxteis, por exemplo) perdem participação. Os gastos em R&D na China hoje só são superados pelos Estados Unidos. Também ocupa espaços crescentes em cadeias de conhecimento e serviços, antes 100% dominadas pelo Ocidente, envolvendo pesquisa, design industrial e marketing. O upgrade na produção requer máquinas mais sofisticadas, alegremente supridas por Japão e Alemanha, mas desta festa o Brasil participa pouco. Este movimento é bem mais recente e trará novos desafios para a estrutura industrial brasileira, fortemente concentrada nos setores de sofisticação média. |
A desaceleração americana forçará a China a redirecionar seu esforço comercial, e isso já está acontecendo. O acordo de livre comércio com o Chile assinado em 2006 é mais uma evidência da estratégia chinesa: não fizemos a saída para o Pacífico, mas a China está fazendo a entrada para o Atlântico e o Brasil sofrerá maior pressão competitiva daqui para frente. Por outro lado, há nichos claros que podem ser explorados pelo Brasil na área de design e marketing. |
A terceira cabeça do dragão é a mais recente, com grande espaço de crescimento, e representa a população da China como grande consumidora global. A incorporação de dezenas de milhões de pessoas ao ano no mercado de trabalho e o rápido crescimento da renda per capita indicam que a China como mercado consumidor é uma realidade cada vez mais próxima. |
O setor produtivo local terá muita dificuldade em atender a demanda em inúmeros setores e as oportunidades para o Brasil são enormes. Claramente o agrobusiness será vencedor, mas há oportunidades em muitos outros setores não tão óbvios e hoje vistos por muitos como perdidos. A crescente classe média demandará produtos de sofisticação intermediária, que podem ser fornecidos pelo Brasil. Por exemplo, sapatos de 70 dólares, alimentos prontos para consumo etc. |
Ou seja, das três cabeças, duas são claramente benéficas para o Brasil. Mas a cabeça maléfica poderá ser muito poderosa, especialmente nos próximos anos. É necessário entendê-la e enfrentá-la. |
Por fim, há ainda os desafios estruturais para a economia global. A emergência da China por enquanto tem sido um fator de estabilidade e confiança, como mostra o descolamento cada vez mais claro do resto do mundo em relação à desaceleração da economia americana. Mas a China tem seus riscos próprios. Tornou-se comum nos últimos meses considerar que a força deflacionista chinesa estaria no fim, ou mesmo teria terminado. Tal avaliação decorre principalmente do fato dos preços das importações dos EUA vindas da China terem deixado de mostrar deflação. A elevação da demanda de alimentos também é vista como um risco importante. Por fim, o mercado de trabalho estaria ficando menos folgado, elevando os custos trabalhistas chineses, apesar do contínuo ganho de produtividade na economia. |
Em nossa opinião, esta é uma forma incompleta de enxergar o problema, pois leva em conta apenas a variação do preço dos bens exportados pela China e deixa de considerar o mais importante: que o nível de preços destes mesmos bens pode diferir bastante dos produzidos em outros países. O nível de preços em mercados com grande concorrência acaba por convergir para o produtor com o menor custo marginal. Mesmo que o custo marginal deste produtor seja crescente, enquanto tal custo for inferior ao de um produtor em outro país, o preço global deste produto continuará a cair. |
Este é o caso da China hoje, que tem experimentado custos marginais crescentes, como é natural em um processo de convergência de renda para níveis mais altos, mas que ainda são muito inferiores aos dos países desenvolvidos e de outros emergentes. O resultado é preços globais ainda cadentes ou estáveis na maioria dos produtos industriais exportados pela China, mesmo com preços chineses em alta. Particularmente interessante é a contínua deflação dos preços de importações americanas vindas do restante do chamado cinturão do Pacífico, que basicamente inclui todo o Leste e Sudeste Asiático, no caso excluindo a China. A redução da inflação das importações americanas vindas da Europa também é incrível, tendo em vista a contínua apreciação do euro nos últimos anos, que, tudo o mais constante, deveria levar os europeus a buscar aumentos de preços para suas exportações (como tem sido o caso das empresas brasileiras). Mas nada está constante e a competição global é feroz em quase todos os segmentos industriais. Por fim, mesmo o temor de custos salariais crescentes parece injustificado, a não ser em algumas categorias específicas. Isso porque o aumento da produtividade continua muito forte, implicando custos de trabalho por unidade produzida ainda cadentes. |
Em suma, apesar das incertezas, acreditamos que a China ainda será uma força deflacionista por alguns anos. Mesmo assim, há riscos cíclicos importantes, dados pela interação do fenômeno chinês com a economia global, que não podem ser desprezados. Um deles é o impacto da desaceleração americana no setor exportador chinês, que acreditamos ser pequeno e minimizado pela conquista de market share em outros países. Outro risco grave e que deve ser monitorado com atenção é a emergência de pressões inflacionárias mais generalizadas na China e na Ásia em geral, que certamente demandaria uma resposta de política econômica e abalaria o cenário atual de crescimento acelerado. |
Para o Brasil a lição é só uma: o perfil de nossa indústria e da economia vai mudar, mas não haverá desindustrialização. O que poderá haver são oportunidades perdidas e, neste sentido, a resposta estratégica do Brasil ao dragão ainda é incompleta. Uma visão ampla dos desafios e oportunidades é fundamental. É hora de olhar para o futuro e não de recriar o passado. |
Luiz Carlos Mendonça de Barros e Paulo Pereira Miguel são economistas da Quest Investimentos |
José Roberto Mendonça de Barros é economista da MB Associados |
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