terça-feira, 6 de novembro de 2007

Terceiro mandato: inoportuno e inconveniente

Franklin Delano Roosevelt (1882 - 1945) foi eleito presidente dos Estados-Unidos quatro vezes seguidas, em 1933, 1937, 1941 e 1945. Faleceu durante seu quarto mandato.


* Rui Falcão


A oferta de um terceiro mandato consecutivo ao presidente Lula, levada na bandeja por dois deputados governistas no dia de seu 62º aniversário, foi um verdadeiro presente de grego. De fato, tanto a proposta de emenda constitucional do mineiro Carlos William (PTC), quanto a do balão de ensaio de um plebiscito com idêntica finalidade, sugerida pelo amigo e ex-colega sindical do presidente, o petista de São Paulo Devanir Ribeiro, quase estragaram a festa.

Em sucessivos pronunciamentos, aqui e no exterior, o presidente Lula já repeliu a idéia do terceiro mandato consecutivo, não o desejando para si nem para os outros. Ainda na semana passada, pela quinta vez neste ano ele foi taxativo ao desautorizar qualquer iniciativa tendente a discuti-la. Caso ocorra uma reforma política, o presidente Lula é favorável ao fim da reeleição, fixando-se em cinco anos a partir daí o mandato do presidente, governadores e prefeitos.

A tese, na realidade, surgiu nas hostes adversárias já nos primeiros dias do segundo mandato e passou a ser brandida por seus áulicos na forma de um complô para manter Lula na Presidência até 2014. A fundamentar a suspeição, são chamados à prova reiteradamente quatro fatos, entre outros:

- Depois de quase cinco anos de governo, o presidente Lula mantém altos índices de aprovação, em torno de 60%;

- O excelente desempenho da economia não encontra paralelo nos últimos vinte anos, com recordes de produção, faturamento e lucros, recuperação do emprego, aumento do poder aquisitivo, distribuição de renda, expansão do mercado interno, controle da dívida pública, queda dos juros e outros indicadores altamente favoráveis, a incitar nos eleitores uma resposta positiva a um aceno em favor do continuísmo na eleição presidencial de 2010;

- O PT não disporia de um nome forte para candidato à sucessão de Lula. Os nomes mais lembrados nas pesquisas de opinião pública como favoritos são candidatos da oposição;

- A proposta, feita pelo PT, de se convocar uma Assembléia Constituinte exclusiva, para promover a reforma política, é apontada pela oposição como um pretexto para se mudar as regras, e, assim, abrir a possibilidade constitucional de um terceiro mandato consecutivo.

A despeito da sanha adversária, que ousa insinuar risco de golpe, não há nada na proposta de Constituinte exclusiva que represente uma ameaça à democracia. Mesmo que a idéia de terceiro mandato tivesse fundamento na realidade, não se trataria de golpe de força, mas de mudança legal por meios previstos na Constituição.

Politicamente, no entanto, sou contrário ao terceiro mandato consecutivo, porque sou contra o instituto da reeleição, que, embora exista em outros países democráticos, era estranho à nossa cultura política. Introduzida de forma casuística e a peso de ouro no Congresso para reconduzir FHC, as pesquisas têm indicado que a maioria da população mostra-se favorável à reeleição. Mas resultado de pesquisa, por si só, ainda não mudou minha concepção a respeito do tema. Enquanto continuar existindo na lei, disputaremos a reeleição, mas somos contrários à sua permanência. O PT também sempre a combateu em seus programas e documentos.

Apesar disso, há democracias sólidas com reeleição e regimes parlamentaristas com longa permanência do primeiro-ministro (ministra). No regime presidencialista, o caso mais lembrado é o de Franklin Delano Roosevelt, nos EUA, que foi reeleito por quatro vezes (1933-1944); e, na França, o de François Mitterrand, presidente por duas vezes, durante quatorze anos (1981-1995). No regime parlamentarista, tem-se o caso do primeiro ministro britânico, do Partido Trabalhista, Tony Blair, com dez anos (1997- 2007). Com exceção da Venezuela, não conheço outros países em que o presidente pode ser reeleito sucessivas vezes.

Président de la République de 1981 à 1995, François Mitterrand.
François Mitterrand Presidente da República Francesa durante 14 anos, de 1981 à 1995,

Em si, portanto, a idéia não é golpista. Mas é inconveniente, inoportuna e desastrada, podendo produzir efeito oposto ao que, aparentemente, seus idealizadores pretenderiam.

Primeiro: Dar continuidade ao projeto de transformações políticas, econômico-sociais e culturais iniciado pelo presidente Lula não implica que somente possa ocorrer com ele à frente, convertendo-se a alternância de poder numa espécie de salvacionismo populista. Uma tal hipótese já foi liminarmente afastada mais de uma vez pelo presidente Lula, ao afirmar que ninguém é imprescindível ou insubstituível.

O populismo é por definição uma negação da política, uma antipolítica, que remove o jogo democrático do espaço em que se negociam os conflitos, para nele instalar a vontade única de um redentor, que há de conduzir sozinho o povo ao paraíso, pelo condão de sua própria fantasia alucinada. Não se há de esquecer que o Partido dos Trabalhadores surgiu na constelação partidária brasileira com o propósito programático de cortar o passo á demagogia e à impaciência irrefletida de quem se nega a considerar o decurso do tempo e o diálogo como necessários para se satisfazer as demandas populares represadas historicamente, tempo necessário à implementação negociada das estratégias de governo. Combater o populismo é uma das razões históricas da existência do PT, por se tratar de um obstáculo à consolidação da democracia, como pudemos aprender na experiência política brasileira, para nos atermos aos confins do Brasil.

Para nós e para o PT, o elemento que caracteriza e diferencia a democracia não é tanto a sua pretensão de assegurar a representação da soberania popular e sim os seus procedimentos de deliberação, para a confrontação de interesses, para uma gestão compartilhada dos conflitos escalonada no tempo. Em contraste, a simultaneidade dos tempos no populismo, que elimina mediante ilusionismos a distância entre as aspirações populares e a realização das promessas do caudilho, é um atributo do autoritarismo e do totalitarismo.

A continuidade do programa democrático-popular do governo Lula e a manutenção dos compromissos programáticos do PT e dos partidos aliados podem ser igualmente asseguradas por meio de um candidato próprio do PT ou de seus aliados, com sustentação popular e apoiado por uma coligação. Evidente que o apoio de Lula, dada sua liderança, carisma e popularidade, bem como as realizações do governo petista jogam papel fundamental na sucessão em 2010.

Dessa forma, propor um terceiro mandato consecutivo amparado no prestígio do presidente e no seu suposto favoritismo eleitoral cheira a casuísmo e aversão à idéia da alternância, valor caro a todos os democratas como nós. Assim, qualquer proposta que altere mandatos – prorrogando-os ou permitindo uma nova reeleição – não deveria atingir os atuais mandatários, como, aliás, o presidente Lula tem afirmado quando se diz favorável ao mandato de cinco anos.

As propostas dos dois deputados também vêm em má hora, por servir de pretexto aos que se opõem à convocação de uma Assembléia Constituinte exclusiva, para promover a reforma política e eleitoral que o atual Congresso não se dispôs a realizar, pois fere seus próprios interesses, legítimos ou não. Lembre-se, a propósito, de que a Constituinte exclusiva, já defendida pelo vice presidente José Alencar -, que a quer, também, para a reforma tributária – não tem sido proposta exclusivamente por membros do PT ou dos partidos no governo. Os que se opõem à ela são os mesmos que não admitem ampliar a participação popular, com a regulação dos mecanismos de democracia direta, segundo prevê a Constituição; os mesmos que se opõem à extinção do sistema bicameral, ou do bicameralismo exacerbado; ou os mesmos que manipulam a idéia do terceiro mandato, com o propósito irresponsável e falacioso de associar o PT e o governo do presidente Lula a instintos chavistas.

Por fim, do ponto de vista conjuntural, a proposta de terceiro mandato desserve o difícil trabalho de articulação política do governo, em seu intento de aprovar a prorrogação da CPMF, para o que vem costurando, à custa de concessões, um acordo político com o PSDB. E até do ponto de vista da consolidação do sistema partidário – uma das bandeiras da proposta de reforma política do PT - ela é prejudicial, pois trava e impede o surgimento e fortalecimento de lideranças nacionais que possam substituir Lula, sem prejuízo do reconhecimento de sua própria liderança.

Ademais, esse debate, em meio ao primeiro ano do segundo mandato do presidente Lula, presta-se a turvar o ambiente de governabilidade, ao precipitar a sucessão antes da hora - isso é tudo o que nenhum governo deseja.

Nossa tarefa, como petistas e parlamentares, deve ser a de dar sustentação ao governo Lula, apoiá-lo, divulgar e capitalizar suas realizações, que se constituem em um grande patrimônio para a disputa eleitoral de 2008. Esta sim, na ordem do dia, e de cujo sucesso dependem, em grande parte, as eleições parlamentares e majoritárias de 2010 – que deverão ocorrer, pela primeira vez desde 1989, sem Lula na cabeça de chapa.

Rui Falcão, 63 anos, advogado e jornalista, é deputado estadual pelo Partido dos Trabalhadores. Foi deputado federal, presidente do PT e secretário de governo na gestão Marta Suplicy.

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