domingo, 27 de maio de 2007

Sirva-se um elixir para a democracia

Boaventura propõe uma nova teoria crítica para sacudir as ciências sociais e a emancipação política que virá da aproximação de representantes e representados

Laura Greenhalgh para o caderno Mais do jornal O Estado de São Paulo

Longe e perto. Assim está o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos em relação ao Brasil. Ainda que mantenha vínculos estáveis de trabalho com a Universidade de Coimbra, onde dirige o Centro de Estudos Sociais, o professor viaja bastante, realiza pesquisas e conferências em diferentes partes do mundo e não raro vem ao Brasil - país que freqüenta desde os anos 70, quando morou em favelas no Rio para realizar a pesquisa de sua tese de doutoramento, defendida na Universidade de Yale, nos Estados Unidos.
Boaventura de Sousa Santos

Leia aqui alguns trechos da entrevista do sociólogo Boaventura de Sousa Santos

(...)É impressão ou a corrupção no mundo cresceu nos últimos anos?
Cresceu fundamentalmente porque houve uma mudança no padrão ético. A idéia de que o Estado é “diabólico” e a perda dos valores do serviço público, eram sintonizados aos ideais republicanos - como o de que o bem do público prevalece sobre o privado, ou a regra de que eu, funcionário público, necessariamente devo ganhar muito menos do que os que contratam comigo - ora, esses valores foram corrompidos. Fixou-se a idéia de que o que é bom vem da sociedade civil, não do Estado.

Mas, lá trás, viu-se que o Estado centralizador acabava derivando para o Estado paternalista e corrupto.

De fato. Mas tiremos um exemplo do mundo empresarial. Quando uma companhia está mal, reúne-se o conselho de administração para buscar soluções. Ninguém prefere fechar a empresa de cara, certo? Não se fez isso com relação ao Estado. Não se buscou reformá-lo. Ao contrário, disseminou-se a idéia de que ele é “irreformável”. O que vemos hoje? Vemos que essa visão mudou. No momento inicial de imposição do modelo neoliberal, criou-se não só a idéia de que o Estado é corrupto - o que era verdade - mas a de que o Estado era irrecuperável. Isso, até meados dos anos 90, quando tanto o Banco Mundial quanto o FMI passaram a reavaliar suas posições, chegando à conclusão de que não se pode confiar em Estado fraco. Bom mesmo é o Estado forte, eficiente e transparente. Enterraram a idéia de que não é reformável! Essa mudança aparece claramente no relatório de 1997 do Banco Mundial, com uma análise detalhada do desmantelamento do estado soviético.

Hoje o que se vê hoje na Rússia são infiltrações das máfias em todo o aparelho estatal e na burocracia. Por que aquilo deu nisso?

Porque diante do Estado desacreditado cresceram as organizações mafiosas. Elas ocuparam o vazio de autoridade. Daí os magnatas russos. O senhor Abramovich, por exemplo, é dono do Chelsea, o time inglês que ganhou campeonatos na Inglaterra... E surgiram outros tantos milionários como ele. Ficaram formidavelmente ricos com o encolhimento do Estado. Por isso, proponho rever a política à luz de uma nova teoria crítica. Não devemos detonar a democracia representativa, mas fortalecê-la. Como intensificar a democracia? Uma boa opção seria aproximá-la da democracia participativa, que incorpora melhor a prestação de contas.

Professor, o senhor acompanhou com entusiasmo a experiência petista do orçamento participativo em Porto Alegre. Mas o partido acabou sendo derrotado pelo voto.

A idéia não saiu derrotada junto à população, tanto que a prefeitura de Porto Alegre continua a adotá-la. E mais: há orçamento participativo em 1.200 cidades da América Latina. No meu site, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, mantenho um observatório global das práticas de orçamento participativo e vejo que muitas cidades européias hoje se valem desse mecanismo testado em cidades latino-americanas. Não sou eu quem diz, mas o Banco Mundial: o orçamento participativo, além de ter surtido efeito sobre a distribuição da renda, permitiu que os empréstimos da instituição ficassem mais protegidos da corrupção. Veja o caso dos conselhos municipais de saúde do Brasil: como funcionam bem, de maneira independente, com poder deliberativo e participação dos cidadãos! Esse modelo não se choca com a representação, apenas se articula com ela. Só que os partidos, de modo geral, não gostam dessa conversa de participação popular, pois a sentem como ameaça... Por essas e outras é que setores da população começam a alimentar um certo fundamentalismo contra os partidos. Reagem dizendo que todos estão podres, todos são vendidos, etc.

(...) O senhor já disse que há mais corrupção no mundo. Em contrapartida, há menos democracia?

Exato. Há um déficit de democracia cada vez maior. Nos últimos 20 anos, agravaram-se os problemas da desigualdade no mundo, como prova o relatório do Pnud de 2000. Os 500 indivíduos mais endinheirados do planeta têm tanta riqueza quanto os 40 países mais pobres do globo, países que somam uma população de 1 bilhão de pessoas. Sendo assim, os países periféricos ficaram incapazes de fazer frente às políticas hegemônicas. Neste ponto, eu ressalto o papel meritório de Brasil, Índia e África do Sul, ao cobrarem mais seriedade nas negociações internacionais. Veja agora o que aconteceu com Paul Wolfowitz, retirado do Banco Mundial. A maioria dos países-membros do banco pediu a saída dele, por corrupção. Mas Wolfowitz só caiu porque a União Européia (UE) resolveu derrubá-lo. Como no banco o poder de voto é correspondente ao PIB dos países-membros, de nada adiantaria os 180 mais pobres pedirem a cabeça dele. Isso é déficit democrático. Podemos continuar a análise pensando na ONU, na guerra do Iraque, em Darfur... Se pensarmos em tudo isso vamos, como se diz aqui em Portugal, desfiar um rosário de muitas contas. Quanto à corrupção, ela também é um fenômeno em escala global, mas se dá em graus diferentes. Ela é pequena nos países nórdicos. O mesmo não posso dizer de Portugal, infelizmente. Aqui ela cresce e vejo isso claramente em pesquisas que faço sobre o sistema judiciário. Na África, outra realidade que também estudo, trata-se de problema gravíssimo. Grande parte da ajuda internacional para as nações africanas ou permanece nas mãos dos doadores ou vai para as mãos de líderes políticos locais. Não chega a quem de fato necessita dela.

Em certos países, experimenta-se a democracia direta. O que o senhor acha disso?

Os referendos, como as consultas e os conselhos populares, são mecanismos importantes para garantir participação. Mas não podem ser usados indiscriminadamente, exigem certas condições, inclusive culturais. A Suíça tem uma vastíssima tradição nessa área. Lá os referendos são uma prática incrustada na cultura política do país, e funcionam muito bem. Mas isso depende do grau de informação do cidadão e dos meios disponíveis para impedir a manipulação da opinião pública. Vamos avaliar o que aconteceu em Portugal. Grupos de alto poder econômico, ligados à Igreja Católica, desviaram a discussão sobre o aborto com anúncios caríssimos, com intervenções televisivas, numa luta desigual. Fora isso, a Igreja intensificou seu trabalho publicitário gratuito nas homilias das missas. Mesmo assim, ao passar por um segundo referendo, o aborto foi legalizado.

O senhor aponta “a razão indolente” como um mal do nosso tempo. O que isso significa?

Ela é como uma pessoa preguiçosa. É a razão que não trabalha, não pensa, não se esforça, acomoda-se na superficialidade das coisas. Anos atrás, o modelo thatcherista foi apresentado como uma idéia acima de qualquer contestação, idéia para a qual não havia alternativa. Foi aceita no mundo inteiro, num movimento passivo, guiado pela razão indolente. Hoje, aceitamos que existem economias e economias, que as européias são diferentes da americana, que esta por sua vez é diferente das latino-americanas, e assim por diante.

A discussão sobre as mudanças climáticas, que hoje se impõe em termos globais, pode decretar o fim da razão indolente?

Sem dúvida. Não escaparemos disso. O meio-ambiente é justamente uma área em que a razão indolente dos Estados têm sido perversa. Evita-se pensar no tema fora dos ciclos eleitorais. Para enfrentar esse problema imenso, que afeta a todos, pede-se uma razão muito mais atenta, muito mais crítica e muito mais cautelosa no sentido de suspeitar daquilo que nos parece natural. Por exemplo: até pouco tempo o governo dos EUA sustentava que não havíamos de nos preocupar com o aquecimento global porque ele não estava provado cientificamente. Então os países perderam um tempo enorme para reagir ao problema, relaxados numa indolência estrutural e política. Ora, num mundo com risco de colapso ecológico, essa indolência é trágica! As pessoas no Brasil parecem ignorar o ritmo de destruição da Amazônia. É absolutamente preocupante! Não é mais uma questão ambiental, mas de sobrevivência da humanidade. Por que o problema não entra para valer na agenda política? Porque esbarra em interesses econômicos. Voltamos ao ponto inicial.

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