Sirva-se um elixir para a democracia
Boaventura propõe uma nova teoria crítica para sacudir as ciências sociais e a emancipação política que virá da aproximação de representantes e representados
Laura Greenhalgh para o caderno Mais do jornal O Estado de São Paulo
Longe e perto. Assim está o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos em relação ao Brasil. Ainda que mantenha vínculos estáveis de trabalho com a Universidade de Coimbra, onde dirige o Centro de Estudos Sociais, o professor viaja bastante, realiza pesquisas e conferências em diferentes partes do mundo e não raro vem ao Brasil - país que freqüenta desde os anos 70, quando morou em favelas no Rio para realizar a pesquisa de sua tese de doutoramento, defendida na Universidade de Yale, nos Estados Unidos.
Leia aqui alguns trechos da entrevista do sociólogo Boaventura de Sousa Santos
(...)É impressão ou a corrupção no mundo cresceu nos últimos anos?
Cresceu fundamentalmente porque houve uma mudança no padrão ético. A idéia de que o Estado é “diabólico” e a perda dos valores do serviço público, eram sintonizados aos ideais republicanos - como o de que o bem do público prevalece sobre o privado, ou a regra de que eu, funcionário público, necessariamente devo ganhar muito menos do que os que contratam comigo - ora, esses valores foram corrompidos. Fixou-se a idéia de que o que é bom vem da sociedade civil, não do Estado.
Mas, lá trás, viu-se que o Estado centralizador acabava derivando para o Estado paternalista e corrupto.
De fato. Mas tiremos um exemplo do mundo empresarial. Quando uma companhia está mal, reúne-se o conselho de administração para buscar soluções. Ninguém prefere fechar a empresa de cara, certo? Não se fez isso com relação ao Estado. Não se buscou reformá-lo. Ao contrário, disseminou-se a idéia de que ele é “irreformável”. O que vemos hoje? Vemos que essa visão mudou. No momento inicial de imposição do modelo neoliberal, criou-se não só a idéia de que o Estado é corrupto - o que era verdade - mas a de que o Estado era irrecuperável. Isso, até meados dos anos 90, quando tanto o Banco Mundial quanto o FMI passaram a reavaliar suas posições, chegando à conclusão de que não se pode confiar em Estado fraco. Bom mesmo é o Estado forte, eficiente e transparente. Enterraram a idéia de que não é reformável! Essa mudança aparece claramente no relatório de 1997 do Banco Mundial, com uma análise detalhada do desmantelamento do estado soviético.
Hoje o que se vê hoje na Rússia são infiltrações das máfias em todo o aparelho estatal e na burocracia. Por que aquilo deu nisso?
Porque diante do Estado desacreditado cresceram as organizações mafiosas. Elas ocuparam o vazio de autoridade. Daí os magnatas russos. O senhor Abramovich, por exemplo, é dono do Chelsea, o time inglês que ganhou campeonatos na Inglaterra... E surgiram outros tantos milionários como ele. Ficaram formidavelmente ricos com o encolhimento do Estado. Por isso, proponho rever a política à luz de uma nova teoria crítica. Não devemos detonar a democracia representativa, mas fortalecê-la. Como intensificar a democracia? Uma boa opção seria aproximá-la da democracia participativa, que incorpora melhor a prestação de contas.
Professor, o senhor acompanhou com entusiasmo a experiência petista do orçamento participativo em Porto Alegre. Mas o partido acabou sendo derrotado pelo voto.
A idéia não saiu derrotada junto à população, tanto que a prefeitura de Porto Alegre continua a adotá-la. E mais: há orçamento participativo em 1.200 cidades da América Latina. No meu site, no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, mantenho um observatório global das práticas de orçamento participativo e vejo que muitas cidades européias hoje se valem desse mecanismo testado em cidades latino-americanas. Não sou eu quem diz, mas o Banco Mundial: o orçamento participativo, além de ter surtido efeito sobre a distribuição da renda, permitiu que os empréstimos da instituição ficassem mais protegidos da corrupção. Veja o caso dos conselhos municipais de saúde do Brasil: como funcionam bem, de maneira independente, com poder deliberativo e participação dos cidadãos! Esse modelo não se choca com a representação, apenas se articula com ela. Só que os partidos, de modo geral, não gostam dessa conversa de participação popular, pois a sentem como ameaça... Por essas e outras é que setores da população começam a alimentar um certo fundamentalismo contra os partidos. Reagem dizendo que todos estão podres, todos são vendidos, etc.
(...) O senhor já disse que há mais corrupção no mundo. Em contrapartida, há menos democracia?
Exato. Há um déficit de democracia cada vez maior. Nos últimos 20 anos, agravaram-se os problemas da desigualdade no mundo, como prova o relatório do Pnud de 2000. Os 500 indivíduos mais endinheirados do planeta têm tanta riqueza quanto os 40 países mais pobres do globo, países que somam uma população de 1 bilhão de pessoas. Sendo assim, os países periféricos ficaram incapazes de fazer frente às políticas hegemônicas. Neste ponto, eu ressalto o papel meritório de Brasil, Índia e África do Sul, ao cobrarem mais seriedade nas negociações internacionais. Veja agora o que aconteceu com Paul Wolfowitz, retirado do Banco Mundial. A maioria dos países-membros do banco pediu a saída dele, por corrupção. Mas Wolfowitz só caiu porque a União Européia (UE) resolveu derrubá-lo. Como no banco o poder de voto é correspondente ao PIB dos países-membros, de nada adiantaria os 180 mais pobres pedirem a cabeça dele. Isso é déficit democrático. Podemos continuar a análise pensando na ONU, na guerra do Iraque, em Darfur... Se pensarmos em tudo isso vamos, como se diz aqui em Portugal, desfiar um rosário de muitas contas. Quanto à corrupção, ela também é um fenômeno em escala global, mas se dá em graus diferentes. Ela é pequena nos países nórdicos. O mesmo não posso dizer de Portugal, infelizmente. Aqui ela cresce e vejo isso claramente em pesquisas que faço sobre o sistema judiciário. Na África, outra realidade que também estudo, trata-se de problema gravíssimo. Grande parte da ajuda internacional para as nações africanas ou permanece nas mãos dos doadores ou vai para as mãos de líderes políticos locais. Não chega a quem de fato necessita dela.
Em certos países, experimenta-se a democracia direta. O que o senhor acha disso?
Os referendos, como as consultas e os conselhos populares, são mecanismos importantes para garantir participação. Mas não podem ser usados indiscriminadamente, exigem certas condições, inclusive culturais. A Suíça tem uma vastíssima tradição nessa área. Lá os referendos são uma prática incrustada na cultura política do país, e funcionam muito bem. Mas isso depende do grau de informação do cidadão e dos meios disponíveis para impedir a manipulação da opinião pública. Vamos avaliar o que aconteceu em Portugal. Grupos de alto poder econômico, ligados à Igreja Católica, desviaram a discussão sobre o aborto com anúncios caríssimos, com intervenções televisivas, numa luta desigual. Fora isso, a Igreja intensificou seu trabalho publicitário gratuito nas homilias das missas. Mesmo assim, ao passar por um segundo referendo, o aborto foi legalizado.
O senhor aponta “a razão indolente” como um mal do nosso tempo. O que isso significa?
Ela é como uma pessoa preguiçosa. É a razão que não trabalha, não pensa, não se esforça, acomoda-se na superficialidade das coisas. Anos atrás, o modelo thatcherista foi apresentado como uma idéia acima de qualquer contestação, idéia para a qual não havia alternativa. Foi aceita no mundo inteiro, num movimento passivo, guiado pela razão indolente. Hoje, aceitamos que existem economias e economias, que as européias são diferentes da americana, que esta por sua vez é diferente das latino-americanas, e assim por diante.
A discussão sobre as mudanças climáticas, que hoje se impõe em termos globais, pode decretar o fim da razão indolente?
Sem dúvida. Não escaparemos disso. O meio-ambiente é justamente uma área em que a razão indolente dos Estados têm sido perversa. Evita-se pensar no tema fora dos ciclos eleitorais. Para enfrentar esse problema imenso, que afeta a todos, pede-se uma razão muito mais atenta, muito mais crítica e muito mais cautelosa no sentido de suspeitar daquilo que nos parece natural. Por exemplo: até pouco tempo o governo dos EUA sustentava que não havíamos de nos preocupar com o aquecimento global porque ele não estava provado cientificamente. Então os países perderam um tempo enorme para reagir ao problema, relaxados numa indolência estrutural e política. Ora, num mundo com risco de colapso ecológico, essa indolência é trágica! As pessoas no Brasil parecem ignorar o ritmo de destruição da Amazônia. É absolutamente preocupante! Não é mais uma questão ambiental, mas de sobrevivência da humanidade. Por que o problema não entra para valer na agenda política? Porque esbarra em interesses econômicos. Voltamos ao ponto inicial.
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