sábado, 2 de fevereiro de 2008

Holocausto no carnaval

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A proibição do carro alegórico da Viradouro pela justiça do Rio provocou uma polêmica neste carnaval sobre liberdade artística e de expressão, em relação ao nazismo e o holocausto de 6 milhões de judeus. Reproduzo a seguir, do jornal O Globo, o eco deste debate publicado na sua edição de hoje.

Penso que a FIERJ agiu corretamente tentando persuadir a Viradouro a fazer mais explicita a condenação do holocausto, com eventualmente uma faixa com os dizeres “holocausto, nunca mais” e posteriormente de requerer a justiça, que acabou proibindo o dito carro alegórico.

Argüir da democracia, da liberdade de expressão, da arte e da censura, princípios pelos quais devemos ter o maior resguardo, não me parece adequado.

Nos países europeus, por exemplo, existe uma clara legislação que proibe a publicação ou o ensino de teses negacionistas. Os negacionistas pretendem que o holocausto nunca existiu e invocam o direito à livre expressão para propagar sua idéologia nazista. Em vários países europeus existem formações políticas neo-nazistas que reivindicam uma existencia legal com o argumento da liberade de organização partidária e a recusa da censura, contra a proibição da qual são objeto. No Brasil também certo tipo de literatura, a de conteúdo racista por exemplo, é objeto de proibição.

Tem países, como os Estados-Unidos, onde este tipo de censura é recusada, primando o principio da liberdade de expressão. Como se vê, não existe resposta evidente e simples.

Anos atrás a foto do filho do Principe Charles, fantasiado de oficial nazista em uma festa, provocou uma onda de indignação e motivou desculpas públicas na Inglaterra. Ninguém disse na época que Chaplin no filme O Ditador também estava fantasiado de nazista, para defender o gesto ultrajante do herdeiro do trono inglês ou que a liberdade estava sendo coibida.

Neste caso o que está em questão não é a intencionalidade dos autores do carro alegórico, mas o significado da banalização do holocausto. Em segundo lugar o contexto: desfile de carnaval, no meio da musica, a festa e a dança. Terceiro, a própria representação, uma pilha de cadáveres e um Hitler fantasiado dançando. Por acaso a imagem, no sambódromo, e na mídia internacional, seria acompanhada de um texto explicativo dizendo que se trata de uma denuncia do holocausto e não de uma apologia?

Por último, como mostram as cartas reproduzidas pelo O Globo, o debate não opõe “os judeus”, aos “outros”. Judeus ou não, as opiniões se dividem e é bom que seja assim. Muitos antisemitas procuram uma casquinha para falar da censura dos judeus, do nome judaico da juíza, da dominação judaica no mundo. Uma prova que a vigilância sobre o assunto é uma questão essencial, pois o antisemitismo não é uma questão só de história, mas de absoluta atualidade.

Luis Favre

O GLOBO

olha o holocausto aí, gente!

O carro é de mau gosto. Proibi-lo é ainda pior

Henrique Koifman

Como cidadão brasileiro — e especialmente por ser judeu — sou contra a censura. Associo o conhecimento, o acesso à informação e a liberdade de expressão à luz e não consigo separar a censura das trevas.

Dificilmente a proibição de uma obra, tema ou opinião é tão eficiente para contestá-la quanto outras obras, opiniões e debates. É isso que diferencia um estado de direito, democrático (no sentido político e social da palavra) dos demais.

Entendo o ponto de vista de quem lutou pela proibição do carro alegórico.

Em outros períodos históricos, o silêncio custou a vida de milhões. Mas não creio que seja esse o caso. O carro da Viradouro é de um mau gosto tremendo, mas proibi-lo é de um mau gosto maior. E para julgar sua pertinência, o foro mais gabaritado é o dos jurados escalados para o desfile e o público, no sambódromo e nos lares.

Ano que vem, gelo-seco simbolizando gás?

Eduardo Fradkin 

A proibição do carro do Holocausto, como toda censura, baseia-se na crença de que a sociedade não tem capacidade de julgamento próprio. Sou contra a censura, apesar de partilhar das opiniões da juíza, que considerou a iniciativa uma “banalização dos eventos bárbaros” praticados pelos nazistas. Duvido que membros de minha família que pereceram em campos de concentração gostassem de ver a “denúncia do Holocausto”, como foi qualificada pela Viradouro a sua alegoria, em meio ao baticum carnavalesco, ao samba e num contexto alegre. Não posso falar por eles, mas, para mim, é leviano, ridículo e, sim, é a banalização de uma tragédia. Imagine se a moda pega, e, no próximo ano, aparece um carro “denunciando” Auschwitz, expelindo gelo-seco como se fosse gás pela Sapucaí? Bem, mas aí é que está a beleza de uma democracia: ter a liberdade de fazer o que quiser e pagar o preço por isso — o juízo público.

Eduardo Fradkin é jornalista

Não há um símbolo do Mal como Adolf Hitler

Renato Galeno

Na pequena sala de projeção, um grupo de jovens alemães ria. Os mais engraçadinhos sussurravam piadas, e adolescentes louras sorriam. O documentário que passava no telão era sobre o massacre de seis milhões de judeus em campos de extermínio nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. O local? O campo de Auschwitz-Birkenau, numa manhã de visita turística em setembro 2004.

Entendo que a intenção de Paulo Barros, ao criar um carro com corpos empilhados, fosse denunciar o maior massacre organizado de um grupo de pessoas da História. Confesso não conseguir entender tão bem a decisão de colocar, como destaque, um homem fantasiado de Hitler.

Mas é uma idéia digna. Porém, no mundo de hoje, em que o valor das imagens se multiplicou pela facilidade de transmissão de informação, é preciso cuidado.

Sou a favor da liberdade artística. Defendi o direito — não, mais do que isso, o dever — dos jornais europeus reproduzirem as charges de Maomé publicadas por um diário dinamarquês, que tanta polêmica causaram entre radicais islâmicos. Defendi

Porém nem tudo são flores Há dissabores, infelicidades Vidas perdidas nesse mundo de maldade

uma exposição que ocorria no mesmo momento na Dinamarca, que mostrava um Jesus crucificado nu. Sou ávido leitor de livros sobre o sofrimento de palestinos nos territórios ilegalmente ocupados por Israel — e fui criticado, em carta remetida a este jornal, por um ex-presidente da Federação Israelita por ter escrito um texto com elogios a um destes livros. O problema não é a coisa em si, mas a mensagem. E não existe mensagem sem um meio para transmiti-la. Como qualquer estudante sabe, o meio e a mensagem são indissociáveis, o contexto constrói o significado.

A intenção era denunciar o massacre, claro. Mas, e a mensagem? O que é um desfile de carnaval? Alegria. É o que se espera como reação do público, é o que esse público espera encontrar nas escolas, e é o que milhões de brasileiros e estrangeiros assistem pela TV. Alguém aí acredita que o povo na avenida ficaria chocado, que se conscientizasse com o carro (que, talvez, ganhasse o apelido de “Carro do Bigode”)? A imagem de pessoas inocentes executadas de modo sistemático serviria para alertar para o perigo de regimes totalitários baseados em ódio racial? Ou o Hitler sobre a pilha de corpos serviria como protetor de tela de laptops de neonazistas, aqui e no exterior? Alguns poderiam dizer que, caso o carro falasse do drama da escravidão, não haveria reação. É válido, mas parte de uma premissa falsa. Sou dos que defende não só a ação afirmativa, mas até a reparação financeira aos descendentes de escravos.

Mas há duas diferenças — que ultrapassam o distanciamento histórico, pois há milhares sobreviventes dos campos de extermínio e seus filhos vivos. 1) A banalização da maldade ocorreu tanto na escravidão quanto no Holocausto, mas, no segundo, além de trabalhos forçados (“o trabalho liberta”), a intenção era exterminar uma “raça”. 2) Não há, na barbárie da escravidão, um símbolo do Mal como Hitler.

Não vou entrar no mérito da capacidade de gerar consciência que um desfile pode ter. O ponto principal do meu raciocínio é: a intenção por trás do carro (denunciar a intolerância) é irrealizável através do meio escolhido. Poucos ouvem o comentarista da Globo descrever o enredo da escola, remetido para a imprensa. A imagem, sim, está lá, inequívoca, em linguagem universal: Hitler sambando sobre pessoas executadas.

Num mundo ideal, o bom-senso levaria as pessoas a não tomarem atitudes que prejudicam outras. Mas nem sempre agimos com bom-senso, e para isso existem leis.

Avançamos o suficiente para, felizmente, vivermos num Estado democrático de direito, em que as leis são — ou deveriam ser — legítimas. Se a única forma de impedir algo que demonstra tanta falta de sensibilidade, e que provocaria incrível dor em muitas pessoas, é uma ação judicial, que assim seja. Infelizmente, que assim seja.

Voltando à minha visita a Auschwitz. A reação do jovens mostra que, mesmo com o meio e a mensagem coordenados, é difícil conseguir transmitir as emoções que o “artista” pretende. Mas, depois de alguns minutos, os adolescentes alemães se calaram. Alguns choraram. É que após o filme não houve paradinha de bateria nem fogos de artifício anunciando a próxima escola, mas a visão de roupinhas de bebês executados, salas de experimentos médicos e um prédio dedicado a indizíveis torturas (o bloco “Auschwitz dentro de Auschwitz”), um crematório e uma câmara de gás.

Renato Galeno é jornalista

Os três pilares que sustentam o mundo

Osias Wurman 

Ensinam os sábios do judaísmo que o mundo sustenta-se sobre três pilares: verdade, justiça e paz. Num evento como o carnaval, onde a verdade é suplantada pela fantasia, devemos evitar temas que, travestidos por motivos alegóricos banalizariam o maior genocídio da História, o Holocausto. A memória dos mártires que morreram nas mãos dos nazistas, não merece ser maculada por uma imagem onde o genocida encima o carro, dançando, enquanto suas vitimas (esculturas de mortos e mutilados) são a base da alegoria. Esta imagem, passada para milhões de espectadores em todo mundo, onde ainda existem milhares de sobreviventes vivos, com os números gravados pelos nazistas em suas mãos, seria uma injustiça moral inaceitável.

Se desejava prestar homenagem às vitimas, ou ensinar o que foi o Holocausto, a Viradouro deveria preservar o espírito de paz entre sua direção e os representantes das vitimas da tragédia. O clima de enfrentamento, após 90 dias de dialogo, impediu o entendimento, que poderia trazer uma solução didática e não agressiva.

O homem mais sábio da historia bíblica, o rei Salomão, ensinou que não há nada de novo abaixo do sol. Problemas com o uso de símbolos sagrados ou temas religiosos, já se repetiram na historia do carnaval. O importante é que reste um aprendizado das conseqüências.

Osias Wurman é jornalista

Ninguém tem o monopólio dos temas

Bernardo Sorj

A tradição diz que a sabedoria é o caminho do meio. Nem empurrar realidades desagradáveis para baixo do tapete, por medo do conflito, nem insuflar fatos além de suas dimensões.

Tempo atrás, a porta de minha sala na UFRJ foi pichada com uma suástica. Fui convidado por lideranças judaicas a denunciar publicamente a “existência de anti-semitismo na universidade”. Minha intuição era de que ela foi feita por um aluno ressentido com críticas minhas.

Com certeza não estava frente a um fenômeno de “anti-semitismo na universidade” e a solidariedade de meus colegas pareceu suficiente. Valorizar o evento seria fazer publicidade indevida e apresentar uma versão distorcida da realidade.

O respeito pela sensibilidade alheia no espaço público, em relação a objetos sagrados ou de grupos que sofreram discriminação, humilhação e perseguição é fundamental para construir uma sociedade onde ninguém sinta negada sua dignidade humana. Este objetivo porém é construído a partir de uma bagagem cultural, onde hábitos lingüísticos, formas de humor e preconceitos inconscientes estão presentes. Não se trata de justificá-los, mas reconhecer que um comentário mal elaborado sobre raça, religião, sexo ou etnia não transforma alguém em racista, anti-semita, homofóbico ou sexista.

O conceito de racismo esconde uma diversidade de situações. Um comentário racista não significa que o indivíduo esteja disposto a entrar na Klu Klux Klan.

A maioria das pessoas, inclusive, acaba por se desculpar. Expressões indevidas devem ser combatidas com ponderação, caso a caso, para não se produzir uma indústria de vitimização, de líderes e instituições legitimamente constituídos que se projetam pela denúncia. Há áreas, como o humor, onde a luta contra o preconceito é mais complexa. Muitas charges ferem indivíduos e grupos. Mas, o humor deve ser censurado, apesar de se reconhecer como distorção do real? Não. O humor é parte fundamental de uma sociedade democrática, obrigandonos a aceitar visões diferentes daquilo que “adoramos”.

Escolas de samba tratam dos mais diversos temas, desde a violência na cidade (com participação de vítimas e familiares), ou a escravidão no Brasil.

Todo tema pode ser “carnavalizado”. A questão não é o tema, pois ninguém tem monopólio sobre ele, mas a forma em que ele é tratado e a mensagem que se quer veicular. Uma discussão ponderada sobre o carro alegórico do Holocausto deve focalizar somente esta questão. Um diálogo aberto entre todas as partes interessadas é o caminho a trilhar e não há razões para duvidar, a priori, da boa fé das pessoas. É possível que no final do dia tenhamos posições diferentes, mas sem preconceitos e com clareza sobre os pontos em que divergimos, dentro de uma lição de convivência democrática.

Bernardo Sorj é professor titular de sociologia da UFRJ — www.bernardosorj.com

Um comentário:

LatinWriter disse...

Necesito dizer que descordo com Eduardo Fradkin. Sou estudante de jornalismo nos EUA e entendo bem seu descontentamento porque aqui este tipo de censura talvez seja considerada um ato a liberdade de expressao. No entanto, nao concordo com sua definicao de censura. Nao estou me baseado em definicoes estabelecidades mas no senso comun. Na verdade, a censura nao tem nada que ver com a capacidade de uma sociedade de julgar um evento apesar de que pode fazer parte da difinicao especialmente levando em consideracao uma sociedade onde a grande maioria possui um baixo ou inexistente nivel de escolaridade. Pra mim, censura tem a ver com a capacidade de bloquear a divulgacao de mensagens de odio coletivo e que eventualmente possam vir a afetar certos grupos que merecem respeito como vitimas de eventos crueis e barbaros.

Por exemplo, aqui nos EUA foi grande a censura quando Janet Jackson teve seus seios a mostra durante um show ao vivo. Isso obviamente nao se deve a que o publico americano nao tenha capacidade de julgar que nao era parte de um ato sexual, ou qualquer otra interpretacao, mas sim porque afetava uma audiencia que se supoe nao tinha o poder para fazer tal interpretacao --afinal isto ocorreu em canal publico e horario com restricoes para menores. O que ao meu parecer é bastante hipocrita mas faz parte da cultura deste pais. No nosso, o respeito ja passou das barreiras do aceitavel. Me parece que esta historia da censura, nao é uma questao de direito de expressao mas de responsabilidade e respeito ao retratar tais coisas. Que vc acharia de um carro alegorico expressando autrocidades aos corpos de seus avos, pais, filhos, irmaos? Os nazistas sim foram barbaros e em respeito a seus familiares voce deveria pensar mais antes de expressar sua opiniao, ainda mais como jornalista. Eu nem judia sou mas posso entender que qualquer tragedia, seja ela o Holocausto, o ataque das torres gemeas, os genocidios na Africa, a morte por fome ou descaso governamental e publico como no caso recente de acidentes aereos, etc. deve ser cuidadosamente revisado ao ser usado como inspiracao de arte; primeiro, para proteger os individuos da comunidade afetados por ela e segundo com a intencao de promover o entendimento nao o odio e a intolerancia. Me parece que neste carro a intencao era dubia e se o juizo publico é de uma camada da populacao ignorante isso so geraria mais intolerancia. Tambem me parece que a razao pela qual este carro foi censurado nao foi somente as imagens chocantes que indicavam corpos mortos mas tambem a falta de respeito e demostracao de indignacao contra estes atos.

Me perdoe, mas seu juizo, assim como o de otras pessoas aqui (apesar do alto nivel de educacao), realmente deixa muito a desejar... Eu respeito sua opiniao mas espero que seja capaz de entender que nem sempre a liberdade de expressao faz sentido. Se vc quer uma sociedade tal qual a americana que deixa grupos como o Ku Klux Klan existirem em base desta liberdade, mas que censura coisas naturais como um incidente no qual sao vistos o seios de uma cantora, entao voce esta certissimo e lhe aconselho que continue a dissiminar sua opiniao. So espero que pessoas tais essa juiza continuem a existir no Brasil pois isso me orgulha de dizer que sou brasileira apesar dos pesares!